Suspende-se ligeiramente a respiração ao entrar em Siza: a grande escala dos desenhos – tantos, tantos –, a abundância das fotografias, a poderosa respiração das madeiras da sala nobre da Fundação Gulbenkian a ecoar nas peças de mobiliário criadas pelo arquiteto português, as subtis relações estabelecidas entre o longo percurso expositivo e os jardins emoldurados por janelas gigantescas, as surpresas e as soluções curatoriais, as obras convidadas e os convidados de honra, a mundividência expectável mas também a intimidade a merecer palco ao lado, o humor a aparecer aqui e ali ou os cadernos pessoais de Siza Vieira (pretos, alguns poucos vermelhos) desengavetados por milagre fac-símile…
Tudo isto estarrece, maravilha, inspira orgulho. É que a lógica tradicionalista de resumir uma carreira de arquiteto a maquetes exatas, a documentação técnica e a linguagem algo estéril e codificada não traduz a construção desta exposição.
Afetos e paixões
Siza tem argamassa de afetos, obsessões, admiração, retribuição – um “atlas”, segundo o vocabulário escolhido pelo curador Carlos Quintáns Eiras, que espelha um criador reconhecido “à escala planetária”, merecedor de uma “dimensão que por vezes Portugal esquece e ignora” e que “inspirou muitos arquitetos a que pensassem em respeitar a cidade”.
E, dirá mais tarde o crítico galego, um arquiteto sempre crente no credo de “transformar o País, de imaginar um futuro melhor”. Até mesmo quando os seus projetos não são realizados – e é possível encontrá-los aqui, também.
Isto e muito mais são materiais e memórias descritivas que fazem parte de um complexo e vasto corpo de trabalho que Quintáns Eiras, em colaboração com a arquiteta Zaida García-Requejo, minerou em cerca de 250 mil documentos de um universo de mais de meio milhão (resultantes do cruzamento dos materiais de arquivo existentes na Fundação de Serralves e na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, no Canadian Centre for Architecture de Montreal, Canadá, no centro Drawing Matters na Grã-Bretanha, ou no próprio atelier do arquiteto). Só falta, aqui, dirá a dada altura o curador, “o cheiro de Siza”, o tabaco, o café, mais madeiras táteis.
Esta exposição, a primeira realizada em Lisboa, em três décadas, dedicada a Álvaro Siza Vieira, nascido há 90 anos em Matosinhos, filho de engenheiro e pai de arquiteto, defensor da arquitetura modernista de Portugal, primeiro prémio Pritzker português (em 1992), é de outra ordem. Exige tempo, mas recompensa amplamente o visitante.
É uma imersão na obra, é certo, mas é igualmente uma radiografia de um criador que revela uma compulsão para o desenho, um sentido de humor “fino” como o dos britânicos, uma paixão sem desculpas pela dança, pela música, pela viagem, pela teia de afetos – por exemplo, em Siza, é possível contemplar toda uma parede com retratos de amigos e familiares, feitos com sinuosas linhas e olho treinado para a observação, ou revisitar algumas obras singulares da mulher, a artista Maria Antónia Siza (1940-1973).
A organização de Siza segue esse pressuposto: caminha-se do profissional para o pessoal, da grande para a pequena escala, do público para o privado, do profissional para a produção plástica, tudo bem seguro por uma rede de conceitos.
A primeira parte, denominada “Arquitetura”, espelha o abrangente “atlas de Siza” através de 30 verbos, como “afastar”, “olhar”, “orar”, “traçar” ou “voar” – cada um exemplificado com três obras arquitetónicas patentes num U gigante que perfaz 90 (ecoando os 90 anos de Siza).
Antes disso, duas fileiras de cadernos permitem um voyeurismo consentido: a letra miúda de Siza Vieira, cheia de sublinhados, desenhos espontâneos, pontos de interrogação, fachadas ensaiadas. Siza, o arquiteto, é também Siza, o desenhador constante. Diz Carlos Quintáns Eiras que, “através destes cadernos, ele mostra uma forma de pensar”. “O desenho, para Siza, é conquistar, de alguma forma, o futuro”, acrescenta. E Siza desenha tudo – mesas ou candeeiros, paisagens de viagens imaginadas ou reais, em papéis e folhetos de companhias aéreas, ou retratos de músicos em maços de tabaco Camel. Aqui, também, encontramos um Siza cheio de humor: aquele que nos cadernos inscreve a palavra “disciplina” – acrescentando-lhe “nenhuma”, “pouca” ou mesmo “sem”.
Descendo as escadas, entra-se na secção “Arquiteto”, a metade da exposição dedicada às bússolas e referências de Siza. As suas primeiras aguarelas estão lá, em cores terrosas, assim como um autorretrato de diminutas dimensões. E a surpresa de obras de Picasso, Matisse e Amadeo. “Para Siza, Picasso é muito importante. Podemos ter um Siza relacionado com o impressionismo ou imensas outras coisas, mas a sua relação fundamental é com o cubismo”, defende o curador. Outras paixões estão aqui evocadas: escultura (objetos africanos), música, sobretudo o jazz, ballet… Numa vitrina, 39 maços de tabaco revelam desenhos de músicos, toda uma orquestra que serve de banda sonora muda para a instalação dos desenhos dedicados ao ballet, suspensos em plintos metálicos. Na parede, desenhos ampliados de Siza marcam o ritmo imparável da sua mão. Até onde nos conduzirá mais?
Siza > Fundação Calouste Gulbenkian > Av. de Berna, 45A, Lisboa > T. 21 782 3000 > até 26 ago, seg, qua-sex e dom 10h-18h, sáb 10h-21h > €6