A chave para entendermos Pobres Criaturas, o último filme-sensação do grego Yorgos Lanthimos, está, naturalmente, em Frankenstein, obra fantástica de Mary Shelley. A escritora britânica contava a história de um inventor sem escrúpulos, que concebeu uma criatura sem atributos sociais. O monstro Frankenstein não era um puro vilão, mas simplesmente alguém de força desmedida que não sabia como funcionar em sociedade e que, por isso, se tornava perigoso.
Na fantasia de Lanthimos passa-se algo parecido. Bella é uma recriação de um médico louco, com as cicatrizes de um Frankenstein, e, na sua educação para a sociedade, acaba por lhe ser apresentada demasiado cedo. Se no monstro de Frankenstein o perigo estava na força descontrolada, aqui esse poder físico é substituído pelo erotismo e por uma tendência para o epicurismo com forma de se olhar o mundo marcada pela genuína curiosidade de uma criança.
Pobres Criaturas venceu o Leão de Ouro de Veneza e obteve 11 nomeações para os Oscars, uma delas na categoria de Melhor Filme e outra na de Melhor Banda Sonora
Lanthimos serve-se desta fábula para fazer uma reflexão filosófica sobre a própria sociedade (um pouco ao estilo do Papalagui, com a sua visão exterior do universo ocidental). Há um olhar inocente, prático e irónico sobre o mundo, estupidificando-se a razão de ser dos códigos sociais. São cenas de humor fácil, mas eficaz. Bella é monstruosa na sua sede de vida e de experiência, um ser despido de preconceitos e limitações, com um poder de raciocínio lógico devastador, que herdou do criador, um cirurgião chamado Deus.
Estética e também narrativamente, Lanthimos faz de Pobres Criaturas um esplendoroso filme à la Tim Burton – há ali muito de, por exemplo, Eduardo Mãos de Tesoura – e um dispositivo estético absolutamente deslumbrante, no retrato pictórico das cidades por onde Bella passa, que inclui Lisboa, com pastéis da nata e o fado de Carminho. Mas, ao contrário de Burton, Lanthimos não faz da fábula um conto de fadas. Prevalece sempre um tom ensaístico e racional que supera o punch emocional. O motivo é, acima de, tudo pragmático.
O argumento está impecavelmente desenhado, e para o seu funcionamento contribuem duas grandes atuações: em primeiro lugar, Emma Stone, que também volta a produzir o filme de Lanthimos, como já havia feito em A Favorita, e, em segundo, o insuperável Willem Dafoe, em mais um papel difícil de esquecer.
Pobres Criaturas > De Yorgos Lanthimos, com Emma Stone, Mark Ruffalo, Willem Dafoe, Ramy Youssef > 142 min