Edgar Pêra explicou, em entrevista, que a ideia de Não Sou Nada começou com a imagem de um edifício em forma de cérebro. O objetivo inalcançável do filme é mesmo transportar-nos para o interior da cabeça de Fernando Pessoa e encontrar uma multidão de heterónimos. Mas sabemos à partida que, quando muito, seremos transportados para a cabeça do próprio realizador. Não Sou Nada é um divertimento pessoano, um “cinenigma”, como lhe chama Pêra, um labirinto em forma de thriller ou uma celebração de Pessoa em forma de filme.
Edgar Pêra dá corpo aos heterónimos de Pessoa que, segundo Jerónimo Pizarro, são 136. A ideia na base do filme é que, de facto, para que fosse possível fazer tudo aquilo a que se propôs, Pessoa teria de contar com uma extensa equipa feita de desdobramentos de si próprio.
Pessoa ortónimo é o líder daquele estranho escritório, com ar de redação de jornal dos anos 20. Só que os próprios heterónimos têm dificuldades de relacionamento entre si. Desenvolvem-se crises, disputas, invejas e rivalidades. E corpos. Um a um, os heterónimos são misteriosamente assassinados. Além de ser um frenético retrato psicológico ou psiquiátrico, o filme torna-se também um thriller policial, em que planos de realidade e ficção se misturam.
Este thriller pessoano foi todo filmado, em regime de isolamento, numa fábricana Vila das Aves
O realizador faz de Fernando Pessoa um líder, seguro de si próprio, com o estilo do ator Miguel Borges. E faz de Ofélia de Queiroz uma femme fatale, com o glamour de Victória Guerra. Ou seja, transforma o amor inconcretizável de Pessoa numa super-Ofélia, num objeto imaginado, num novo heterónimo. Tudo isto adquire lógica própria, pois estamos a permitir que o filme nos leve numa efabulação sobre o pensamento do próprio Pessoa. E quando se trata de pensamento não há limites.
Não obstante, e é importante que se diga, por louco que seja o conceito e arrojada a estrutura, há uma fidelidade no filme ao pensamento pessoano em toda a sua heterogeneidade. A quase totalidade das palavras proferidas em Não Sou Nada é retirada de textos de Pessoa. Mas através delas só se pode chegar à conclusão de que Pessoa foi tudo e o seu contrário.
Em muitos aspetos, esta proposta de Edgar Pêra é uma abordagem de Pessoa no sentido oposto ao Filme do Desassossego, de João Botelho. De um lado há frenesim; do outro, contemplação.
Fica a dúvida sobre se o filme funcionará propriamente como um thriller. Ou seja, se tem a capacidade de criar esse tipo de tensão no espectador. Mas parece claro que é um objeto de invulgar ousadia, com um olhar original sobre a desfragmentação pessoana e que nos transmite toda a inquietude do poeta.
Não Sou Nada > De Edgar Pêra, com Miguel Borges, Victória Guerra e Albano Jerónimo, 92 min