Há lições memoráveis, capazes de nos ajudar a traçar objetivos e definir prioridades. Neste caso, a masterclass proferida pelo produtor norte-americano Ron Diamond tinha um título sugestivo: “Passos para ganhar um Oscar da Academia.” Entre as curtas-metragens exibidas (galardoadas ou apenas nomeadas), houve uma, La Maison en Petits Cubes (2008), do japonês Kunio Kato, que causou uma impressão fortíssima em João Gonzalez. “Descobri o potencial da animação autoral e a maravilhosa capacidade de síntese de uma curta. Foi um ponto de viragem. Não que tivesse começado a fazer animação para ganhar um Oscar… [risos]”, recorda o realizador, de 26 anos. Mas algumas regras e qualidades descritas por Diamond devem ter ficado registados, quanto mais não seja no seu subconsciente.
O decisivo chumbo a matemática
João nasceu e estudou no Porto – o apelido Gonzalez vem da família materna, de origem galega –, num percurso com muitos ziguezagues. Dos 4 aos 13 anos, teve formação musical (o pai é pianista e professor), mas a adolescência fê-lo desistir do piano e apostar no voleibol. Por outro lado, sempre se sentiu à vontade nas áreas artísticas, nomeadamente no desenho. “Adorava desenhar, mas só o conseguia fazer nas aulas de Educação Visual; como sou perfeccionista, sentia muita pressão, e só avançava quando tinha um trabalho para entregar”, recorda. Contudo, no Secundário, influenciado por amigos, seguiu a área de Ciências. Quando se candidatou à faculdade, escolheu Engenharia Informática como primeira opção, mas o mau resultado a Matemática levou-o para a segunda escolha, a licenciatura em Multimédia, na Escola Superior de Media, Artes e Design (ESMAD), em Vila do Conde. “Foi uma sorte, o chumbo a Matemática colocou-me no caminho certo”, acredita.
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Durante o curso, teve o primeiro contacto com a animação. “Agradou-me a liberdade total, o poder começar do zero e não estar limitado à nossa realidade”, conta. A abertura às artes fê-lo também regressar à música. “Tive um período completamente obsessivo, porque sentia-me chateado por ter parado de tocar piano durante tanto tempo, e estudava 12 a 14 horas por dia para recuperar o tempo perdido.” A primeira curta que lançou, The Voyager (2017), foi um trabalho de curso, onde já compôs e interpretou a banda sonora. Um bom arranque, com o qual arrecadou vários prémios nacionais e internacionais. “Quando havia alguma apresentação do filme, propunha-me a tocar ao vivo a banda sonora, como forma de me desafiar, porque não o fazia há muito tempo.” Percebeu que nessa conjugação entre a animação e a música estava uma das suas mais-valias.
Seguiu depois para Londres, para fazer o mestrado no Royal College of Art. Nestor (2019), a segunda curta, foi mais um projeto escolar que teve bom acolhimento nos festivais de animação, conquistando 12 prémios. “É sobre um homem, com vários comportamentos obsessivo-compulsivos, que vive no seu pior pesadelo, um barco-casa instável que nunca para de oscilar e coloca os objetos fora do sítio… É um comportamento com o qual me enquadro, é um filme mais autobiográfico”, conta João.
Com o projeto final do mestrado em Animação, o agora célebre Ice Merchants, conquistou novamente a atenção dos festivais. Antes da nomeação para o Oscar, o percurso da curta já tinha sido exemplar: foi o primeiro filme de animação português a ser premiado em Cannes; foi um dos cinco nomeados para os Prémios do Cinema Europeu; somou nove prémios em festivais qualificantes para os prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood; conquistou 45 outros prémios e menções especiais em festivais de cinema e ultrapassou as 100 seleções oficiais em festivais de todo o mundo, tudo em menos de um ano de circuito. Desta vez, Gonzalez contou com a ajuda de uma produção profissional, partilhada pelo Cola – Coletivo Audiovisual (Portugal), a Wild Stream (França) e o Royal College of Art (Reino Unido). “Quando vimos o que já tinha desenvolvido, percebemos que o filme tinha uma estética muito interessante e muito própria, tanto a nível de traço como cromático”, conta Bruno Caetano, do Cola, que enquanto produtor do filme também estará em Hollywood. Ice Merchants teve, ainda, o apoio do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), no valor de 90 mil euros.
Salto para o abismo
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Ice Merchants descreve a história de um homem e do seu filho que todos os dias saltam de paraquedas, de uma casinha no alto de um precipício, para venderem gelo na aldeia situada no sopé. As ligações familiares são marcadas pelas rotinas, quase sem cambiantes, apenas perturbadas por um acontecimento trágico. “Queria trabalhar a perda. As metáforas usadas na animação ajudam-me a falar de algo que me toca e a deitar cá para fora certas preocupações”, explica João. Tal como nos outros dois filmes, a narrativa foca-se no isolamento – há quem fale de uma “trilogia da solidão” –, mas sempre com uma carga poética.
É nos sonhos que nascem os cenários surreais e bizarros das suas obras, pontos de partida para todo o processo criativo. “Tento agarrar-me a imagens que vêm do subconsciente, para que não desapareçam e possam colorir metaforicamente os temas”, descreve. Já de olhos abertos, João usa um diário gráfico para explorar as ideias através do desenho e da escrita. “O cenário é quase como uma terceira personagem.” Apesar de recorrer a uma animação tradicional em 2D, o realizador costuma criar inicialmente um modelo em 3D para compreender melhor o espaço onde decorrerá o filme.
A música e o som assumem no filme uma grande importância, já que Ice Merchants não tem diálogos. “Gosto de começar a composição sonora logo desde o início, ajuda-me a pensar na narrativa de forma estruturada, e a acertar no tom do filme. É como se este fosse moldado, não só pela parte visual mas também pela música”, sublinha. Pela primeira vez, Gonzalez compôs para mais de um instrumento, com a ajuda de Nuno Lobo, que trabalhou como orquestrador e maestro durante as gravações. “O processo de trabalho do João é muito curioso, entre o estirador e o piano… ele sabe onde quer chegar e diverte-se pelo meio”, aponta Bruno Caetano.
O produtor não poupa elogios ao realizador. “É extremamente talentoso e empenhado, trabalha muito bem os timings da animação; mesmo as partes mais calmas têm uma grande força emocional, conseguida através da envolvência sonora.” Durante a exibição do filme em Cannes, recorda, não faltaram lágrimas nos olhos dos espectadores. Para Caetano, a boa aceitação de Ice Merchants tem uma explicação: “É muito universal e humano, qualquer pessoa percebe o que se passa com aquelas personagens, mesmo que sejam desenhadas sem feições.” Isso deve-se ao facto de João não conseguir desenhar rostos com a perfeição que desejava. “Assumir as limitações e arranjar formas criativas de contorná-las é o que define a nossa visão artística”, defende Gonzalez.
O próximo trabalho ainda não está definido. “Costumam perguntar-me se quero fazer uma longa-metragem ou um filme em imagens reais… Enquanto realizador, quero encontrar a melhor forma de exprimir as minhas ideias e se isso passar por um desses formatos assim o farei.” Para já, aguarda com entusiasmo e nervosismo a cerimónia dos Oscars, marcada para 12 de março, e o almoço que a antecede, juntando os nomeados. “Teoricamente, posso ficar sentado ao lado do Brad Pitt, e isso é estranho de processar…”, confessa. Talvez Ron Diamond lhe possa dar mais umas dicas.
Animações históricas: Quatro curtas de animação portuguesas que estiveram nas bocas do mundo
Os Saltadores, 1993, Abi Feijó
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Abi Feijó foi o primeiro realizador de animação português a ganhar grande projeção internacional. Os Salteadores, a partir de Jorge de Sena, terá sido o primeiro filme português a conseguir romper fronteiras de forma convincente, brilhando em importantes festivais, incluindo Annecy (onde ganhou, primeiro, um apoio à produção e, depois, uma menção honrosa). Na sua filmografia, infelizmente curta, destacam-se ainda Fado Lusitano e Clandestino.
Estória do Gato e da Lua, 1997, Pedro Serrazina
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Com o seu filme de estreia, Pedro Serrazina chegou praticamente ao Olimpo. Estória do Gato e da Lua foi selecionado para Cannes, recebeu uma menção honrosa em Clermont-Ferrand (o mais importante festival de curtas na Europa) e circulou por todo o mundo. Com planos picados, imagens sobrepostas e um estudo primoroso dos movimentos de um gato, o filme é um autêntico poema da animação portuguesa.
A Suspeita, 1999, José Miguel Ribeiro
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Foi o primeiro filme português a ganhar o Cartoon d’Or, que é o equivalente aos Oscars na animação. E tudo previa que fosse nomeado pela academia. Contudo, naquele ano, Hollywood reduziu o número de nomeados na categoria de cinco para três e acabou por ficar de fora… A Suspeita é uma animação em stopmotion com marionetas que conta a história de um crime numa viagem de comboio. Depois disso, o realizador fez outros filmes marcantes como Passeio de Domingo e Viagem a Cabo Verde. Em breve estrear-se-á em sala Nayola, a sua primeira longa-metragem.
História Trágica com Final Feliz, 2007, Regina Pessoa
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É um dos mais conceituados nomes da animação mundial e, por duas vezes, filmes seus chegaram a ser apontados para os Oscars. O mais premiado é História Trágica com Final Feliz, animação deslumbrante com um requintado sentido estético e poético. Entre outros, ganhou o Grande Prémio Cristal em Annecy, o mais conceituado dos festivais de animação. O seu mais recente filme, Tio Tomás e a Contabilidade dos Dias, também foi apontado para os Oscars, depois de ter ganho um Annie, o mais importante prémio de animação norte-americano.