1. Lobo e Cão, de Cláudia Varejão
Cláudia Varejão mudou-se para os Açores e descobriu uma ilha dentro da ilha de São Miguel. Mas, claro, muito provavelmente, também se revisitou a si própria. O projeto durou cinco anos, incluindo um ano a viver mesmo em São Miguel, e resultou em Lobo e Cão, a primeira longa de ficção da realizadora.
Todo o trabalho foi feito através da matéria-prima da própria ilha, incluindo os atores (jovens que transformou em atores – Ana Cabral e Rúben Pimenta são grandes revelações), num jogo entre a realidade e o desejo.
O filme começa num tom naturalista, quase documental, estilo a que Cláudia nos habituou, percebendo-se uma liberdade e naturalidade de movimentos dos atores. Um retrato social da insularidade e daquela insularidade específica. Mas logo se percebe que a natureza vulcânica das personagens exige um lado mais ficcionado, livre, uma porta aberta para a concretização do desejo. E é assim que Cláudia desenvolve paralelamente dois campos – um de estética mais realista, outro mais fantasioso – que se completam no retrato interior/exterior, numa sociedade fechada, mas com sede de aventura, de desabrochar, por parte de uma juventude corajosa e orgulhosa das suas opções de orientação sexual.
Nem por isso este é um filme que se fecha numa temática ou universo LGBT. O alcance é incomparavelmente mais longo, robusto e universal. De Cláudia Varejão, com Ana Cabral, Rúben Pimenta, Cristina Branquinho, Marlene Cordeiro > 111 minutos
2. O Perdão, de Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha
Um dos melhores filmes estreados em 2020 só chegou em 2022 às salas portuguesas, tarde demais para poder figurar nas listas de balanço, mas perfeitamente a tempo de ser visto e admirado, O Perdão, assinado pela dupla Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha, realizadores de curta filmografia, faz jus à riquíssima tradição do cinema iraniano.
O Perdão é uma espécie de complemento ou espelho temático de O Mal Não Existe, de Mohammad Rasoulof. O tema, delicado e corajoso, volta a ser a pena de morte. Enquanto Rasoulof dividia o seu filme em quatro histórias, como quem quer cercar o assunto, esta dupla conta-nos apenas uma, mas de um ponto de vista diferente e filosoficamente muito acutilante.
Em O Perdão, há um homem que é condenado à morte por erro judicial. Acompanhamos, então, a viúva em todo o seu sofrimento, desespero e raiva; mas também o juiz responsável pelo equívoco legal, tão humano como ela, com toda a sua insuportável culpa.
Dentro de toda a vitalidade poética do cinema persa, a primeira qualidade que ressalta à vista é a qualidade do argumento. São linhas bem cosidas que fazem coincidir picos emocionais extremos com a emergência de um debate moral. Ao mesmo tempo que nos expõem às mais belas imagens – a cena final é de uma força e violência expressiva raras. De Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha, com Maryam Moghadam e Alireza Sanifar > 105 minutos
3. O Joelho de Ahed, de Nadav Lapid
Filme polémico e visceral, do realizador Nadav Lapid, O Joelho de Ahed denuncia as subtis formas de censura na supostamente muito democrática e ocidentalizada Israel. Filmado de forma livre e experimental, não só em termos estéticos mas também nas próprias formulações narrativas, é o retrato de um homem só. Um realizador (alter-ego de Lapid?), que é convidado pela Direção-Geral de Bibliotecas de Israel para a apresentação de um filme, numa região remota e desértica do país, vê-se compelido a assinar um papel elencando e restringindo os temas a abordar na conversa.
Isto serve de base para uma catarse moral e denunciante, em que se faz, em simultâneo, um levantamento dos fantasmas da guerra e uma exposição da podridão da política militar e ideológica do país. Com O Joelho de Ahed, o realizador, já homenageado no curtas de Vila do Conde, confirma ser um dos casos mais sérios e insurgentes do novo cinema israelita. De Nadav Lapid, com Avshalom Pollak, Nur Fibak, Oded Azulay, Michal Benkovitz Sasu > 109 minutos
4. Donbass, de Sergei Loznitsa
Se não fosse tudo tão trágico e real, até nos poderíamos dar ao luxo de rir de algumas destas personagens, à semelhança do fazemos com os filmes de Emir Kusturica – porque o que sobra neste tão voluptuoso retrato é uma ideia de absurdo. É tudo tão absurdo que se torna mesmo difícil partir daqui para qualquer explicação que não passe por um atestado de loucura coletiva.
Sergei Loznitsa, o mais importante dos realizadores ucranianos e um dos mais fascinantes da Europa, partiu em busca de Donbass, em tempos de ocupação russa (ou independentista), mas ainda antes da invasão de 2022. O filme não é um documentário, aliás nem sequer foi filmado na região ocupada (por motivos óbvios), mas concilia elementos estilísticos próprios do género, como de resto é habitual noutros filmes do realizador.
Loznitsa faz um retrato da ocupação através de um conjunto de quadros. Esses quadros ilustrativos tornam-se, muitas vezes, caricatos pelo seu absurdo. Nada parece encontrar lógica. Todos os movimentos são dominados pela corrupção e por uma violência gratuita e impune. O que vemos são personagens à deriva, com um instinto de sobrevivência social, num labirinto do qual nunca se vislumbra uma saída.
Através de Donbass, não encontramos qualquer solução para a atual guerra. Não são estas as raízes que nos dão respostas, apenas nos mostram um faroeste gelado, caótico, sem rumo nem lei. Há episódios sintomáticos, como o do homem que tenta recuperar o seu carro apreendido pelos militares; o balde de excrementos, despejado pela cabeça de um autarca, ou o violento final que transporta a ideia do assassínio da arte e da cultura.
Donbass foi indicado pela Ucrânia para os Oscars, em 2019, mas, ironicamente, Loznitsa, por defender publicamente os colegas russos contra o cancelamento dos seus filmes nos festivais europeus, acabou por ser expulso da academia ucraniana de cinema. De alguma forma, ele próprio foi vítima do absurdo que retratou. De Sergei Loznitsa, com Tamara Yatsenko, Irina Zayarmiuk, Grigory Masliuk, Olesya Zhurakivska > 122 minutos
5. Descerrando os Punhos, de Kira Kovalenko
O neorrealismo russo ganha pertinência na justa medida em que os seus realizadores desbravam os trilhos interiores do país, em busca das suas histórias. E há muitas histórias para contar. Exemplo maior é este Descerrando os Punhos, vencedor da secção Un Certain Regard, em Cannes. O filme dá-nos uma sensação aguda de anacronismo, de um exotismo gélido, ao mesmo tempo que se assume assustadoramente contemporâneo.
O filme é feito de personagens desligadas socialmente. Uma família constituída por um pai, dois filhos e uma filha. Vivem em isolamento social. Essa ausência de uma rede de afetos exterior faz com que tudo se procure no interior da família. O filme está, aliás, cheio de insinuações incestuosas. Há uma violência implícita de grande brutalidade, que só se concretiza do ponto de vista psicológico.
Mas há rasgos de luz, como o encontro de Tamik com Ada, que lhe devolve esperança, num gesto de amor. O filme, de resto, constrói-se num ambiente radicalmente austero, credível e bem desenhado, com cenas marcantes e simbolicamente explícitas. Nada disto seria possível sem a fabulosa interpretação de Milana Aguzarova que nos guia até aos confins da alma da personagem. De Kira Kovalenko, com Milana Aguzarova, Alik Karaev, Soslan Khugaev, Khetag Bibilov > 97 minutos
6. Trio em Mi Bemol, de Rita Azevedo Gomes
Rita Azevedo Gomes há muito que explora os pontos de contacto entre o cinema e o teatro. Mas nunca tinha levado essa ideia tão longe como em O Trio em Mi Bemol, sobretudo a nível do despojamento da mise-en-scène e da desconstrução narrativa.
Trio em Mi Bemol é a única peça escrita por Éric Rohmer, nome maior do cinema francês. Mas a peça de Rohmer é aqui, mais do que um texto, um pretexto. A realizadora explora sem pudor duas camadas: a história que está a ser contada e os atores que a estão a contar. De forma natural e simples, intercala estes dois campos, como se estivesse constantemente à procura do momento mágico em que o ator se transforma em personagem.
O Trio em Mi Bemol é um filme de uma leveza etérea, quase flutuante, e isso consegue-se através de um minimalismo formal com a ajuda de dois importantes elementos: a música (de Mozart e não só) e, sobretudo, a casa desenhada por Siza Vieira que serve de décor. De Rita Azevedo Gomes, com Rita Durão, Pierre Léon e Ado Arrieta > 127 minutos
7. Fogo-Fátuo, de João Pedro Rodrigues
A ideia do filme partiu de uma notícia que dava conta de que o filho de Duarte Pio de Bragança, o pretendente ao trono de uma monarquia que não existe, tencionava alistar-se nos bombeiros para ajudar o País a combater o flagelo dos incêndios florestais. Isto nas mãos de João Pedro Rodrigues transformou-se numa inusitada comédia – género que o realizador já havia pisado (em Morrer como um Homem, por exemplo) mas que nunca tinha assumido inteiramente em todo o seu esplendor.
Esclareça-se, ponto importante, que João Pedro Rodrigues fez mesmo uma comédia, daquelas que provocam gargalhadas audíveis entre o público. Não é uma revisão ou subversão do género, mas antes o desafio de enquadrar o seu universo e a sua linguagem (continua tudo lá, incluindo o erotismo gay muito explícito) dentro de um formato com regras e propósitos preestabelecidos. Prova superada.
Fogo-Fátuo não é aquele típico filme para ver em família, mas é certamente o mais acessível dos filmes de João Pedro Rodrigues – e que, como qualquer boa comédia, no intervalo das gargalhadas nos põe a pensar em coisas sérias. De João Pedro Rodrigues, com Mauro Costa, André Cabral, Margarida Vila-Nova, Miguel Loureiro, Joel Branco, Oceano Cruz > 67 minutos
8. Os Fabelmans, de Steven Spielberg
Há uma arte centenária chamada cinema, que se celebra nas salas de espetáculos e não nos pequenos ecrãs que cada um tem em sua casa. E Steven Spielberg fez-lhe uma ode. Os Fabelmans não tem propriamente o tom de um manifesto por uma causa que para muitos parece perdida. Mas, ainda assim, acaba por ganhar esse poder, adquirindo especial impacto por vir das mãos de um dos mais admirados e populares realizadores de Hollywood, o homem que fez Indiana Jones, ET, O Tubarão, Jurassic Park…
O argumento é levemente inspirado na infância do próprio Spielberg: um menino judeu que fica obcecado pelo cinema a partir do momento em que os pais o levam a ver um filme de Cecil B. DeMille, ainda nos anos 50. O pai é um marido perfeito e um engenheiro genial, embrião da revolução digital de Silicon Valley, que acha que ser cineasta não é uma profissão; a mãe, uma artista enclausurada na felicidade do lar, que foge constantemente para a estratosfera como numa nuvem de éter.
Os Fabelmans são como os Simpsons ou os Flintstones. Um retrato não demasiado caricatural, mas em que as personagens se definem pelas suas características vincadas, sobretudo o pai e a mãe. Dentro dessa família disfuncional, prestes a desfazer-se, encontram-se alguns traços que lembram Woody Allen, sobretudo na parte inicial, mas também há ali qualquer coisa de Douglas Sirk, nos momentos em que se aproxima do melodrama, sem nunca perder um certo encanto poético e sentido de humor.
Spielberg, realizador cinéfilo, faz filmes explorando uma arte simples e popular de contar histórias (que sempre foi o seu estilo), ao mesmo tempo que, aqui, nos fala sobre o próprio cinema, numa visão do seu descobrimento da arte: o jovem Sam, que aprendeu com os grandes mestres, de DeMille a John Ford, filma um momento (o dia da gazeta) em que ironicamente explora até as técnicas de montagem e engrandecimento atlético da alemã, sempre associada ao nazismo, Leni Riefenstahl. O cinema revela-se em Os Fabelmans como uma arte poderosa e mágica, que seduz, simula e transforma a realidade. De Steven Spielberg, com Gabriel LaBelle, Michelle Williams, Paul Dano, Seth Rogen > 151 minutos
9. Alcarràs, de Carla Simón
Em Verão 1993, a sua primeira longa, a catalã Carla Simón embrulhava-nos num fundo nostálgico, num recuo emocional à infância. Em Alcarràs, que lhe valeu o Urso de Ouro do Festival de Berlim, sobressai uma ideia de falsa nostalgia. É que, apesar de o filme retratar uma realidade rural contemporânea de uma Catalunha profunda, ressalta uma ideia de anacronia, como se o filme remetesse necessariamente para um tempo remoto.
Alcarràs mostra-nos um mundo surpreendente, um estilo de vida em vias de extinção, às portas do cosmopolitismo urbano. Simón foca-se no resquício de uma agricultura cooperativa e familiar, nas lutas dos trabalhadores rurais, mostra a sua realidade e as suas justas reivindicações. Mas esse lado político, bem presente, é, na verdade, atirado para segundo plano.
O que parece interessar a Carla Simón continua a ser o tecido familiar. A forma como as famílias se desenham e se relacionam no seu microcosmos afetivo e social, as relações entre pais e filhos e as dinâmicas obtusas das teias familiares. Em Alcarràs, Simón confirma-se como uma das mais promissoras realizadoras espanholas da atualidade. De Carla Simón, com Jordi Pujol Dolcet, Xènia Roset, Anna Otin, Ainet Jounou, Josep Abad > 105 minutos
10. Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi
Nos últimos tempos, a Academia de Cinema de Hollywood tem mantido o hábito de incluir um outsider nas nomeações para o Oscar de Melhor Filme. Mas a escolha deste ano é particularmente surpreendente:Drive My Car é um filme de três horas, falado em japonês, que adapta um conto do escritor Haruki Murakami. Não tem os ingredientes de filme de culto proporcionado por Os Parasitas, nem qualquer tipo de aproximação ao universo anime ou às artes marciais.
Drive My Car é um filme profundo, introspetivo, reflexivo e filosófico, que nos confronta intimamente com a própria condição humana. Apesar do contexto nipónico, é verdadeiramente universal na sua essência – como acontece, aliás, com os grandes mestres do cinema japonês. Claro que, aqui, a arquitetura é outra. Não estamos na Tóquio de Ozu ou Mizoguchi. As personagens já não se sentam no chão e a câmara não se obriga a enquadramentos condizentes com esse hábito. Contudo, não deixa de haver uma determinada lógica formal, que não deve somente ao grande cinema ocidental.
A narrativa, essa, é pujante em toda a sua amplitude. Sendo um filme sobre o luto e a culpa, inaugura-se num longo prelúdio – basta pensar que o genérico do filme surge apenas ao minuto 30. Até lá, há uma contextualização. Tal como as obras de Murakami, o filme não deixa pontas soltas nem imagens por explicar. E esta longa obra de Hamaguchi que Hollywood descobriu não se afasta do que tem sido o seu percurso, com longuíssimas metragens, como Happy Family ou Asako I & II, desenhadas como ecos da própria vida. De Ryusuke Hamaguchi, com Hidetoshi Nishijima, Tôko Miura, Misaki Watari > 179 min