Aconselha-se os espectadores mais sensíveis a tomar comprimidos para o enjoo ou, pelo menos, a evitar refeições pesadas antes de assistir a este filme. Mas, mesmo assim, não deixem de o ver. Isto é o mesmo que dizer que David Cronenberg está de volta à forma mais visceral (literalmente) a que nos habituou em algumas das suas obras fundamentais, como A Mosca, Existenz ou mesmo Crash.
Depois da ousadíssima curta-metragem A Morte de David Cronenberg, em que, como sugere o título, filma a sua própria morte, o realizador canadiano envolve-nos num universo futurista, para reflexão contemporânea. Este futuro inventado por Cronenberg não é de naves espaciais; está antes ligado à relação do homem com o seu corpo, a reboque de uma evolução científica que faz com que se erradique a dor, possibilitando o culto obsceno de mutilações e mutações. O fascínio de Cronenberg por corpos mutilados e escoriados vem de trás.
No centro da trama está um casal de artistas performers que faz espetáculos através de automutilações, uma espécie de tatuagens dos órgãos interiores. Paralelamente, vários grupos disputam as entranhas a outros níveis, incluindo a ideia ecologista de uma mutação genética que permita a regeneração moral do homem, alimentando-se dos próprios plásticos que produziu em excesso e, desse modo, criando um novo e peculiar ecossistema autorregenerativo.
À sua maneira, Cronenberg é um herdeiro de Aldous Huxley e Georges Orwell, mas, como a sua arte é cinematográfica, acrescenta à pertinência narrativa (que inclui grandes questões filosóficas do mundo contemporâneo) uma linguagem visual fascinante. E, neste domínio, Crimes do Futuro aproxima-se do género do terror; porém, não é um filme de sustos, daqueles que procuram um efeito de montanha-russa. O que Cronenberg habilmente faz é confrontar o homem com as entranhas – físicas, mas também morais, sociais e civilizacionais.
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Crimes do Futuro > De David Cronenberg, com Viggo Mortensen, Lihi Kornowski, Léa Seydoux, Scott Speedman > 107 min