Aos 81 anos, Neal Slavin preserva uma memória prodigiosa, enquanto se detém defronte das fotografias da exposição Saudade/Portugal, patente na Galeria do World of Wine (WoW), em Vila Nova de Gaia, e recorda o contexto em que foram captadas. As mais antigas, a preto e branco, foram registadas entre 1967 e 1968, quando o norte-americano ganhou uma Bolsa Fulbright, para acompanhar as escavações arqueológicas em Conímbriga.
As ruínas romanas ficaram para segundo plano e resolveu percorrer o País de norte a sul, para documentar as pessoas, os costumes e as disparidades deste território, vergado perante um longo regime ditatorial. “Tenho 12 mil negativos da minha primeira estada em Portugal, continuo a descobrir imagens que nunca vi”, conta o fotógrafo e realizador, com mais de 40 anos de carreira, internacionalmente respeitada – já fotografou celebridades como Steven Spielberg, Harrison Ford ou Barbra Streisand para as principais revistas do mundo e participou em inúmeras exposições.
Durante pouco mais de um ano, vagueou livremente e fotografou sem entraves. “Era proibido fazer algumas das imagens, mas inacreditavelmente nunca me travaram, ninguém se preocupava… hoje até é mais difícil fazer imagens, as pessoas são mais desconfiadas”, sublinha. Vindo de um país em turbulência, pela luta dos direitos civis, ficou esmagado pelo silêncio ensurdecedor que imperava no nosso quotidiano. “Naquela época, vi o caráter dos portugueses como desesperança, um túnel escuro com apenas um fio de luz”, confessa. “Viviam em terríveis condições, mas mantinham uma quietude digna.” No início da exposição, aliás, é feita a contextualização histórica do período em que as fotografias foram tiradas.
Em 2016, Slavin regressou a Portugal, com vontade de fazer um documentário sobre esta experiência iniciática, que tanto o marcou profissionalmente. Saudade. A Love Letter to Portugal está a ser exibido, pela primeira vez, no WoW, em sessões diárias, pelas 19h, no auditório do museu Porto Region Across The Ages. “O filme tem quatro enredos paralelos: um, fala sobre a minha vida enquanto artista; outro, sobre a ditadura; o terceiro, sobre a saudade; e o quarto, sobre o fado. E estão todos entrelaçados entre si”, explica Slavin.
Durante esse período, manteve a câmara fotográfica apontada, pelo que metade desta mostra revela 50 imagens a cores tiradas entre 2016 e 2019. Deparou-se com um país mais desempoeirado, livre, mas onde ainda espreitava a saudade. “Diferente, mas ao mesmo tempo igual à que tinha encontrado há 50 anos”, conta. Voltou a falar com as pessoas – entrevistou, por exemplo, Carlos do Carmo e Mariza – e, desta vez, deixou-se apaixonar pelo fado. Nos registos mais atuais, a saudade tanto é visível na expressão emocionada de uma fadista, como adota contornos mais abstratos, no graffiti rabiscado numa paragem de autocarros de Lisboa. Uma celebração da alma portuguesa, como o fotógrafo norte-americano contou na entrevista concedida à VISÃO Se7e.

“Esta é uma carta de amor, visual, dedicada ao povo português”
O documentário que fez tem o nome de Saudade. A Love Letter to Portugal. Que amor é este?
Significa muitas coisas. Quando cheguei em 1967, até àquela data, só tinha feito pequenas séries de fotografias. Estive, por exemplo, no sul dos Estados Unidos, a fazer um trabalho sobre o movimento dos direitos civis – que nunca cheguei a publicar. Mas nunca tinha feito um grande statement. Vim para Portugal com uma Bolsa Fulbright, aos 26 anos, e fiquei pouco mais de um ano. Não foi a minha primeira opção, não queria vir para um país que vivia sob uma ditadura, não fazia sentido para mim, mas aceitei quando soube que ficaria a trabalhar nas escavações arqueológicas de Conímbriga, uma das minhas paixões. Na altura, já fotografava há cinco anos, mas não fotografava arqueologia, fotografava pessoas. Não sabia muito bem o que ia fazer. Tirei as primeiras imagens e eram terríveis. Então, parei e falei com as pessoas. Havia um silêncio no ar que começou a fazer sentido. Pouco a pouco, fui aprendendo um pouco mais sobre os portugueses e comecei a fotografá-los. E adorei as pessoas, foram sempre muito generosos e simpáticos comigo. De certa forma, estou a retribuir aquilo que fizeram por mim. Aprendi imenso naquele período, foi a primeira vez que fiz uma série com esta dimensão e força, descobri visceralmente o que queria fotografar. E esta é uma carta de amor, visual, dedicada ao povo português.
Quando publicou nos Estados Unidos o livro de fotografias Portugal, em 1971, teve algum impacto?
Para mim foi muito importante, sempre adorei este trabalho. Mas na América nunca tinham ouvido falar de Salazar, nem sequer de Portugal, era um daqueles lugares onde ninguém vinha. Por isso, não teve grande impacto. Nos últimos 10 anos, as pessoas descobriram este livro e apaixonaram-se por ele. E não tem nada a ver com o turismo, é um trabalho com o qual se conseguem relacionar, que vai além de Portugal. É esse o poder da fotografia. Vamos publicar agora outro livro, que já inclui as imagens a cores feitas em 2016, deverá sair no final deste ano ou no início de 2023.
É importante mostrar estas imagens e recordar os tempos da ditadura?
Aprendemos apenas com a História, que tende a repetir-se e é o que está a acontecer. Estas imagens são apenas as minhas impressões. No fotojornalismo encontram-se trabalhos fantásticos e poderosos, sobre o sofrimento das pessoas. Não é disso que aqui se trata. Estas imagens são muito pacíficas, mas num segundo olhar, descobre-se que há qualquer coisa de errado. Há uma desesperança no ar. Quando saiu o livro, escreveram um artigo a dizer que ninguém sorria nas imagens. O responsável pelo Turismo de Portugal teve conhecimento do artigo e enviou, para o jornal, imagens de portugueses sorridentes. Foi ridículo. É claro que, quando fotografava, havia pessoas que sorriam, mas o sentimento dominante era o da desesperança. A única consolação era a religião. Era quase involuntário tirar aquelas imagens, não tinha escolha.
Quando chegou a Portugal, em 1967, foi um choque?
Demorei algum tempo a perceber o que estava a acontecer. Estava pronto para começar a fotografar, mas nada fazia sentido. As imagens eram horríveis e não tinham qualquer significado. Percebi que tinha de parar e saber mais sobre o país, para conseguir sentir mais. Estou grato por ter passado por aquilo, testou-me. Nunca me tinha confrontado comigo próprio e com aquilo que estava a sentir. Tens uma câmara, mas essa câmara não serve para nada até sentires alguma coisa e transmitires esses sentimentos através da fotografia.
Sente que captou a alma portuguesa?
Não o digo de forma depreciativa, mas penso que a alma portuguesa é muito vulnerável. E atrai-me. Quando regressei a Portugal, fiquei surpreendido pelo facto de a saudade não ter desaparecido e continuar muito presente. Há uma vulnerabilidade que me atrai imenso nos portugueses, foi essa característica com a qual me consegui identificar. Enquanto artista, também tens de ser vulnerável.
Quando regressou a Portugal, 50 anos depois, voltou a apaixonar-se pelo país?
Oh, sim, estava muito contente por regressar. Entre 2016 e 2019, passei cá várias semanas, até surgir a pandemia, que nos obrigou a interromper o filme durante dois anos. Agora, finalmente ficou concluído. Foi fascinante voltar, porque o país está completamente diferente, é um país moderno, que pertence à União Europeia.
O que o surpreendeu mais?
O ter descoberto que a saudade ainda era tão prevalente. Não estava à espera. É um sentimento que ninguém consegue definir muito bem. O melhor que obtive foi “é algo que vem do coração”. Por isso tive de ir à sua procura. O que aqui veem, nesta exposição, são as minhas impressões.
Quando ouviu falar do 25 de Abril, qual foi a sua reação?
Saí de Portugal praticamente no dia em que Salazar caiu da cadeira [a 3 de agosto de 1968], recebi uma carta a contar o que tinha acontecido e, na altura, houve uma certa esperança que as coisas fossem mudar, quando Marcelo Caetano assumiu o poder. A única coisa que sabia é que, mais cedo ou mais tarde, o regime teria de terminar, porque prolongava-se há demasiado tempo. Quando recebi a notícia da revolução, em 1974, já estava a trabalhar noutros temas. Pensei que tinha terminado este trabalho, mas na verdade nunca está concluído, acabo por voltar sempre a ele.
Saudade/Portugal > Galeria do World of Wine, Vila Nova de Gaia > até 31 de out, seg-sex 12h-19h, sáb-dom 10h-19h > €10 > Saudade. A Love Letter to Portugal > World of Wine, auditório do PRATA, Porto Region Across The Ages > seg-dom 19h > €5, €12 (bilhete conjunto exposição e filme)