Lisboa Clichê, livro que Daniel Blaufuks lançou em setembro e já vai na segunda edição, é também o nome da exposição que se pode ver, até dia 27 de fevereiro, no Museu de Lisboa – Palácio Pimenta, ao Campo Grande. Reúne imagens que o artista, hoje com 59 anos, fez em Lisboa nos anos 90, quando era fotógrafo do jornal O Independente. Aqui se conversa com ele sobre como um livro – de texto e não de fotografias, diz ele – se pode distanciar da exposição que dele nasce. Mas também se fala sobre a vida, a fotografia, a passagem do tempo e o fascínio das cidades. Para dia 19, às 16h, está programada uma visita guiada pelo artista à exposição.
Como nasceu a ideia do Lisboa Clichê?
Nasceu por acaso. Há uns quatro anos, num inverno muito chuvoso, em que não queria sair à rua mas queria fazer qualquer coisa, comecei a digitalizar estas imagens [feitas no tempo em que trabalhou no jornal Independente]. Na quarentena, o campo de ação de um fotógrafo ficou muito limitado – e como eu já fotografava da minha janela há anos, e portanto não iria fotografar mais coisas domésticas, lembrei-me destas imagens. Pensei em começar a selecioná-las e escrever sobre elas. Para me obrigar a uma disciplina, decidi publicar diariamente uma imagem nas redes sociais. Todas as manhãs, tinha uma hora em que pensava que imagem ia entrar, se merecia ou não texto, e obrigava-me a escrever.
Quando digitalizou as imagens, escolheu-as com algum objetivo?
Escolhi com a ideia de que tinha de salvar aqueles negativos. Porque são negativos, são analógicos, e o mundo já não é analógico. Foram até relativamente mal digitalizados. As imagens que estão na exposição tiveram de ser redigitalizadas para poderem ser impressas nestes tamanhos grandes.
Conforme ia pondo nas redes sociais ia fazendo uma segunda escolha?
Sim. Escolhia ou porque era uma boa fotografia ou porque era uma fotografia de algo que eu sentia que era importante documentar. Fotografias que não tinham importância nenhuma quando as tirei ganharam um valor documental. Daí a fotografia da capa do livro ser uma fotografia a cores: quero que se perceba que esta é uma escolha de hoje; não é, de todo, a escolha que teria feito naquela altura. As coisas mudam e essas opções mudam consoante nós mudamos e consoante as próprias coisas desaparecem ou se alteram. Uma fotografia de um edifício não tem o mesmo valor se o edifício já tiver desaparecido – e a fotografia é a mesma.
Foi uma escolha afetiva ou documental, que teve em conta se os sítios tinham desaparecidos?
As duas. Há uma tentativa de documento, mas esse documento também passa por laços afetivos, como as pessoas. Há pessoas conhecidas, pelo que fizeram ou ainda fazem, e pessoas que são minhas conhecidas, do meu mundo privado. Também tive a preocupação de não repetir demasiado as mesmas coisas – se fosse inteiramente afetivo, poderia se calhar ter a mesma pessoa dez vezes. Do lado afetivo há as pessoas que faltam, que não fotografei – ou que não fotografei suficientemente bem para merecer mostrar. E há uma zona em que o afetivo se cruza com o documental: o Sérgio Godinho foi de facto importante numa altura das nossas vidas, influenciou um tempo.
E porque decidiu escrever?
É um bom exercício escrever a partir de imagens. Quando leio alguns escritores que o fizeram, acho sempre muito interessante. No fundo, a imagem – e ainda mais no caso das minhas próprias imagens – sustenta uma memória, mas que também já é uma memória ficcionada. De certa forma, a fotografia é sempre uma espécie de prova: eu provo com aquela fotografia que conheci aquela pessoa porque estava lá. Mas a partir daí a história pode ser ficcionada. Isso é muito bonito na fotografia: todos nós inventamos histórias a partir das fotografias que vemos.
Mas neste livro optou por não inventar histórias.
Sim, mas deixo lá umas pistas. A memória é sempre uma ficção. A memória é como os filmes americanos que dizem no início «baseado em factos reais»: nunca sabemos qual é a percentagem de factos reais. A memória baseia-se em factos reais mas não é de todo real. Há sempre um lado romantizado. Mas prefiro uma escrita factual, não melodramática, não demasiado poética. É como no cinema: não gosto de filmes que põem uma música de violinos para me fazer sentir algo que o realizador quer que eu sinta. Acho que as coisas devem fluir de uma forma que cada pessoa sinta o que ela própria sente, e não o mesmo que o autor. Com as fotografias é um pouco isso. Quando olhamos para uma imagem, o que vemos são as nossas próprias memórias, não as do fotógrafo. A fotografia devolve-nos coisas, do fundo de nós, de que nem sequer nos lembramos. A fotografia é sempre uma metáfora de alguma coisa.
O que distingue a exposição do livro?
Quis afastar a exposição do livro. A exposição é uma exposição de fotografia, enquanto o livro não é um livro de fotografia. Não só porque tem textos, mas também por toda a qualidade de impressão e todo o afastamento do conceito de livro de fotografia. Os livros de fotografia normalmente são objetos caros, de um certo luxo, dirigidos a um tipo de leitor que se interessa por fotografia. Neste livro, a ideia foi muito mais abrangente, muito mais democrática. Desde o início que queria que fosse um livro acessível (custa 20 euros em vez de 40, o que faz uma diferença enorme em termos de público), e que fosse um livro de texto que tem fotografias. Por isso, tem também um papel que normalmente é usado para texto e não para fotografias. A exposição é exatamente o contrário: são impressões de qualidade, sem texto, porque as fotografias devem ser olhadas como fotografias. Há no entanto uma espécie de fluxo cinematográfico comum ao livro e à exposição. A junção de todas as fotografias faz com que o nosso olhar na verdade não pare. Podia ser uma exposição de fotografias lado a lado, emolduradas, e cada fotografia valeria por si. Aqui nenhuma fotografia vale por si, todas valem no conjunto.
Daí a montagem em grupos?
Daí a montagem num painel, numa matriz, em que todas as fotografias falam umas com as outras. Há aqui uma história, um ambiente, há a ideia de cidade em que tudo acontece simultaneamente. Todas estas coisas podiam estar a acontecer exatamente no mesmo momento. É aquilo que sentimos quando vivemos numa cidade que está de facto em movimento: estamos sempre a perder alguma coisa. É isso que faz as cidades – ou fazia, não sei – serem tão fascinantes e tão eletrizantes. Há uma ideia de escolha: se vamos agora ao cinema, vamos perder outra coisa, algo que já não volta.
Essa ideia é muito forte na exposição.
Sim, e a consciência do que é contemporâneo. Pensar que aquela senhora com o passarinho na gaiola, naquela varanda no Bairro Alto, viveu ao mesmo tempo que o Al Berto [poeta]… O Al Berto morreu, a senhora não sei. Estamos sempre em transição, num movimento – e também numa perda.
Diz que este é um livro de texto, e não de fotografia. Como trabalhou a relação entre essa metáfora que a fotografia e uma escrita mais factual?
No livro, ao imprimir as fotografias num papel que não é o mais indicado (e na exposição vê-se a diferença), estou a tratar as fotografias como texto. Estou a dizer «estas fotografias são texto». Nem todas as fotografias do livro são boas – e este não é de todo o livro do meu melhor trabalho, ou das minhas melhores fotografias. Há fotografias que estão lá apenas porque o que elas dizem é importante para a história que estou a contar. Sinto este livro como um romance, em que as fotografias são tratadas como se fossem texto. Na exposição, as fotografias são tratadas como fotografias que são – digo eu no meu egocentrismo.
Houve a preocupação de retratar a sua geração?
Apesar de na altura em que fiz estas fotos estar a trabalhar para um jornal, nunca fui um fotógrafo objetivo. Não sou um documentarista. O que eu tentasse fazer nesse campo iria falhar. Estou sempre a trabalhar num campo que é afetivo e subjetivo – e tudo o que cai aí, se retratar alguma coisa mais, ótimo. Esta é a minha Lisboa, vista pelos meus olhos daquela altura, e as minhas pessoas. Se retrata uma geração? Tenho dúvidas. Por exemplo, se fosse o retrato de uma geração os Xutos deveriam estar aqui, e eu escolhi os Pop dell’Arte, para mim a melhor banda portuguesa. Além disso, também não poderia querer açambarcar a ideia de retratar uma geração, porque não tenho nem trabalho nem feitio para tal.
A sua relação com máquina fotográfica era muito diferente nos anos 90?
Sim. Andava sempre com a máquina, porque tinha trabalhos para o Independente (e antes disso para o Blitz). E era um tempo de descoberta, de descoberta da vida, de descoberta da cidade (tinha regressado há muito pouco tempo a Lisboa) e de descoberta da própria fotografia. Hoje, penso muito mais, sou um fotógrafo que pensa. A própria fotografia mudou imenso, porque todos nós nos tornamos fotógrafos, para o bem ou para mal. Aqui ainda estávamos num tempo em que ter uma máquina fotográfica era algo que nos distinguia. A minha relação com a máquina mudou porque a própria fotografia mudou. No fundo, isto corresponde a um tempo de aprendizagem. A única influência que reconheço é a influência dos filmes de série B americanos, que ia ver à Cinemateca. Mas, visto com olhos de hoje, há ligações com outros fotógrafos, que só vim a descobrir mais tarde.
Quer dar um exemplo?
Há uma ligação com a fotografia japonesa, que é muito contrastada, muito forte, muito urbana, que só descobri mais tarde. Há algumas fotografias, como a da chávena do café, que já vejo que sou eu. Mas há muitas outras fotografias que são um eu que depois não desenvolvi.
No livro, fala várias vezes sobre “o eu que não era eu”. “Agora aquele que era eu, não há dúvida disso sou eu, mas também já não sou eu, um eu que era e que até certo ponto ainda sou, mas que não voltará a ser”. Quase como se estivesse à procura, ao olhar para estas imagens, do fotógrafo que podia ter sido.
Também. Acho que isto diz respeito a todos nós: não só vais tomando opções como a vida te leva por caminhos que não foste tu que escolheste. Fui-me afastando do mundo dos jornais. Foi uma escolha? Não sei. Acho que foi uma escolha que, de certa forma, também me foi imposta pelo que aconteceu – sair do Independente, etc. E também fui fascinado por outras coisas. Independentemente da fotografia, todos nós passamos por esse processo. Quando olhamos para uma fotografia nossa de miúdos, sabemos que somos nós, mas às vezes é difícil reconhecermos que éramos aquela pessoa. Embora aquela pessoa esteja dentro de nós de alguma forma.
Houve quase um ajuste de contas com o passado, ao olhar para os negativos?
Não. Há, sim, uma satisfação: “eu vivi isto, é um privilégio”. A minha vida não estava predestinada para ser assim. Nada o indicava: estudei Gestão na Alemanha e trabalhava numa empresa de rega por aspressão antes de entrar para o Independente. Portanto, só posso olhar para trás com satisfação. A única insatisfação que posso ter, mas que todos nós temos, é que o tempo passou demasiado rápido. É um privilégio voltar a estas fotografias e a Bárbara Bulhosa [editora da Tinta-da-China] ter dito que sim ao livro. Na verdade, quando o propus à Bárbara foi a medo, porque tem 400 páginas. Depois, a Joana Sousa Monteiro [diretora do Museu de Lisboa] convidou-me para a exposição, outro privilégio – e olhar para o meu trabalho desta época sem me envergonhar também é um privilégio. Eu poderia ter sido este fotógrafo o resto da minha vida. Quando comecei, o que queria era ser fotógrafo. Depois, o mundo sofreu alterações e, de certa forma, fui levado para ser artista. Foi uma opção, não foi uma opção? Sei lá. Por um lado, fui atraído, por outro, a fotografia estava a mudar, e mudou. Acho que deixei de fotografar assim porque já não há muitos fotógrafos que o façam. A própria fotografia perdeu esta inocência. Hoje tiramos uma fotografia com o telemóvel e dizemos “isto é um retrato bonito” – não é um retrato, é um apanhado. Um retrato é outra coisa. Quando o Robert Frank viajou pelos Estados Unidos com uma Leica 35 mm, em vez de uma máquina de grande formato que precisa de tripé, já está a tecnologicamente baixar a dificuldade da fotografia.
Estas imagens foram todas publicadas nos jornais?
Na verdade, a maior parte não o foi. Mas um jornal dá uma adrenalina que eu hoje não tenho. Agora não pego numa máquina todos os dias, porque não ando atrás da boa fotografia… Mas isso também tem a ver com o desenvolvimento da própria fotografia. O que é hoje uma boa fotografia?
Como é hoje a sua relação com Lisboa?
A cidade mudou, todos nós sabemos disso, e podíamos agora falar do que melhorou e piorou, do número de turistas, das coisas que desapareceram, dos preços loucos da habitação. São problemas de todas as cidades do mundo. A minha relação com Lisboa mudou sobretudo porque já não sou a pessoa de 25 anos que era. Não só não tenho a energia física, como não tenho curiosidade de ir a tudo. Não vivo com a intensidade que vivia. Há pessoas na idade certa que têm uma relação igual com a cidade à que eu tinha naquela época. Sendo que a cidade mudou, claro: havia uma sensação de cidade pequena, em que toda a gente de certa forma se conhecia, que se perdeu. A cidade não aumentou de tamanho, mas o acesso às coisas, felizmente – e isso faz parte da democracia -, tornou-se muito mais generalizado.
Num dos textos do livro, fala da energia que Lisboa tinha nos anos 90 – texto esse que aliás está na abertura da exposição.
Conheço um francês que vive em Lisboa há quatro anos e que diz sentir aqui uma energia de potência e possibilidade que não existe em Paris. Acho que Lisboa sempre teve isso. O problema da cidade, que também foi o seu charme nestes anos, foi a falta de meios económicos. Na verdade, é também um questão cultural, porque são os estrangeiros que estão a preservar os prédios que os portugueses teriam deitado abaixo.
O livro tem cerca de 300 imagens, a exposição tem 81. É uma redução muito grande, e há provavelmente boas fotografias que ficaram para trás.
Tive em consideração o facto de esta ser uma exposição sobre Lisboa, para o grande público, no Museu da Cidade, o que não é o mesmo do que expor numa galeria de arte contemporânea. Quis que houvesse suficientes fotografias de Lisboa que justificassem a exposição, e não puxei demasiado para a minha vida pessoal. Quis ter retratos e uma mistura de mundos: as fábricas que desapareceram completamente da cidade, as rotativas do Diário de Notícias que já não existem, os próprios jornais em papel que perderam importância. Tentei que essa mistura fosse visualmente apelativa, criando olhares e ligações entre as imagens. Por exemplo: aquela rapariga muito branca que parece de um filme está a olhar para um palhaço triste, que também tem a cara pintada de branco. A escada do Éden parece que desce pela escada da foto ao lado. Tentei fazer alguns jogos, uns mais óbvios do que outros, dentro dos painéis. Com estas mesmas fotografias, podia fazer-se uma exposição completamente diferente.
Na exposição não há nenhuma fotografia do Frágil [o mais emblemático lugar das noites lisboetas dos anos 90].
Decidi não ter aqui o Frágil porque era um mundo de certa forma aberto mas fechado. E lá está: não tenho uma boa fotografia do Frágil. A Luísa Ferreira terá muito melhores fotografias.