1. “Licorice Pizza”, de Paul Thomas Anderson
E mesmo à saída do ano, Paul Thomas Anderson proporciona-nos o melhor feel good film dos últimos tempos, para aliviar a pressão pandémica. Licorice Pizza é uma viagem nostálgica a uma América efervescente nos anos 70. Só que não é uma nostalgia acessível a qualquer um. Por um lado, o contexto é marcadamente americano, por outro, a própria personagem de Gary tem uma dimensão mítica e quase onírica, que nos afasta de qualquer reminiscência quotidiana.
Assim, apesar de baseado na realidade (e até em pormenores autobiográficos), Licorice Pizza é sobretudo uma enorme fantasia adolescente, situada num tempo e num espaço em que tudo era possível. Gary, interpretado por Cooper Hoffman (filho de Philip Seymour…), é um jovem ator que se apaixona por uma rapariga mais velha. É um Romeu e Julieta do gap geracional. Só que, mais do que um ator, Gary é um talentoso e endiabrado homem de negócios em ascensão, sempre com ideias astutas, aproveitando as oportunidades e facilidades da época. Tudo isso cria uma série de aventuras e tropelias, com o ponto mais divertido no encontro com Jon Peters, namorado de Barbra Streisand, interpretado por Bradley Cooper. A nível de elenco, de resto, o filme tem outros luxos, como os pequenos papéis de Sean Penn e Tom Waits, além de uma banda sonora soberba e inebriante. Licorice Pizza > De Paul Thomas Anderson, com Cooper Hoffman, Alana Haim, Bradley Cooper, Will Angarola, Griff Giacchino, James F. Kelley, Sean Penn, Tom Waits > 133 minutos
2. “O Acontecimento”, de Audrey Diwan
Apenas cinco anos antes do Maio de 68, movimento de todas as libertações que, assim como a Revolução Francesa, partiu de França para o mundo, o “país das Luzes” vivia mergulhado numa densa floresta de trevas em termos sociais e morais. É o que se mostra no filme de Audrey Diwan que, com alguma surpresa, ganhou o Leão de Ouro no último Festival de Veneza. Um intenso retrato social e estudantil de uma realidade que parece muito distante, mas que, na verdade, é recente. Pode e deve ser vista em espelho para outros lugares do mundo. Em França, o aborto foi despenalizado nos anos 70, em Portugal, apenas em 2006. E há países onde o que se descreve no filme é a realidade contemporânea (incluindo alguns estados dos EUA).
Diwan adapta o romance semiautobiográfico de Annie Ernaux, que conta a sua experiência traumática de um aborto clandestino enquanto era estudante universitária, no início da década de 60. Deparamos com a geração que antecedeu aquela que fez o Maio de 68 e percebemos como o país, símbolo da liberdade, era mais retrógrado do que podíamos imaginar. Nesta opressão moral e legal adivinha-se, ou percebe-se, a revolta política, social e sexual que se desencadeou no final da mesma década. O Acontecimento > De Audrey Diwan, com Anamaria Vartolomei, Kacey Mottet Klein > 97 minutos
3. “Tom Medina”, de Tony Gatlif
É raro encontrar no cinema recente uma personagem tão forte e bem desenhada como Tom Medina. Ele é ao mesmo tempo uma figura mítica, com atributos quase transcendentais, e de uma humanidade comovente. É o bom ladrão, mas também o mago, cigano, feiticeiro, em que se confia sabendo que não se pode confiar. Não admira, pois, que o filme de Tony Gatlif assuma o nome da personagem. Isto adensado pelo ambiente em volta, a ruralidade misteriosa de Camargue, que quase lembra um western, e é fértil em personagens e situações – um pouco ao estilo de Bruno Dumomnt (O Pequeno Quinquin). Medina é um jovem delinquente, filho de pais incógnitos, com uma história mítica que ultrapassa ou ludibria a realidade. A ação decorre numa espécie de centro de recuperação para delinquentes, no meio do campo, onde trabalha sob a mão férrea, mas amiga e cúmplice de Ulysse. Há logo à partida um jogo com o encanto e os padrões da etnia cigana. Mas há mais. Tom sonha ser toureiro, enche o corpo de enguias, vê touros de fogo, põe a liberdade em causa para socorrer e vingar uma mulher vítima de maus-tratos, é misterioso e enigmático, não se deixa domesticar. É uma personagem “bigger than life” num pequeno e singular mundo. Há uma espécie de predestinação messiânica que não se chega a cumprir.
Presente no festival de Cannes, Tom Medina é um dos mais interessantes filmes de Tony Gatlif, realizador franco-argelino com um longuíssimo percurso. Tom Medina > De Tony Gatlif, com David Murgia, Slimane Dazi, Karoline Rose Sun, Suzanne Aubert > 100 minutos
4. “Correu Tudo Bem”, de François Ozon
Depois de Graças a Deus, filme em que abordava, sem receios, o escândalo de abuso sexual de menores na Igreja francesa, François Ozon volta a um cinema de causas, desta vez para tratar o sempre polémico e fraturante tema da eutanásia. Ozon não é um realizador particularmente elegante, os seus filmes oscilam e nem sempre consegue cumprir os patamares que pretende alcançar (o anterior, Verão de 85, era o exemplo de um filme não conseguido). Mas, apesar de alguma irregularidade e pontos dispensáveis, Correu Tudo Bem, a partir de um romance de Emmanuèle Bernheim, torna-se um dos seus mais interessantes filmes, a começar pela ironia do título.
Abordando um tema delicado, Ozon não se fica pela ideia de um filme-tese, de prós e contras, e dá-lhe textura, com a criação de personagens com alguma densidade psicológica, sobretudo as filhas, que vivem intensamente a morte e a vida do pai, numa espécie de psicanálise feita com a vida real (explora mesmo a dimensão freudiana da ideia de matar o pai). Esses são os melhores momentos que acomodam o drama central, que não deixa de ter um lado quase documental, instrutivo ou antropológico. Contudo, Ozon não consegue resistir à ideia de peripécia, talvez para proporcionar ao espectador momentos de comic relief, com a introdução de personagens pouco trabalhadas e estereotipadas, levando o enredo por alguns lugares-comuns. Não obstante, um filme altamente eficaz no seu nobre objetivo de promover e provocar o debate. Correu Tudo Bem > De François Ozon, com Sophie Marceau, André Dussollier, Hanna Schygulla > 113 minutos
5. “The Matrix Resurrections”, de Lana Wachowski
A saga The Matrix teve um papel semelhante na transição do século ao de Guerra das Estrelas nos anos 70 e 80. Quando, ainda em 1999, as irmãs Wachowski lançaram o primeiro volume, surpreenderam-nos com a criação de um universo paralelo, baseado na realidade virtual emergente, com um novo paradigma para os filmes de ação, que abria portas conceptuais, ao mesmo tempo que nos deixava empolgar por uma história envolvente e uma arquitetura deslumbrante. Quatro anos depois, as irmãs Wachowski trataram de fechar a trilogia com dois filmes de uma assentada só, The Matrix Reloaded e The Matrix Revolutions, colocando rapidamente um ponto final à saga para poderem partir para outros desafios.
Dezoito anos depois surge agora nova sequela, que transforma a saga numa tetralogia, com indicadores de que pode não ficar por aqui. Lilly Wachowski recusou o projeto, dizendo que não queria dar passos atrás na carreira, e a realização ficou apenas nas mãos da irmã Lana. O filme começa por se autodesconstruir, de forma autoconsciente, quase ensaística, com boas tiradas de humor. Depois tenta cumprir o prometido, dar o que se espera de um Matrix, que é um constante jogo entre camadas de realidade e de virtualidade, uma overdose de turning points, de realidades paralelas, perpendiculares, oblíquas, que levam o espectador constantemente a perder-se, para depois reencontrar-se e perder-se novamente. Mas nada disto consegue ser demasiado surpreendente porque o mais expectável num novo Matrix é a própria surpresa. E já vimos tudo isto nos filmes anteriores. The Matrix Resurrections > De Lana Wachowski, com Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Yahya Abdul-Mateen II, Jessica Henwick > 148 minutos
6. “Roda da Fortuna e da Fantasia”, de Ryûsuke Hamaguchi
Roda da Fortuna e da Fantasia está nos antípodas do Japão das mangas e dos filmes de Takeshi Kitano. Quando muito, recupera a beleza dos clássicos, também com um olhar sobre a arquitetura agora aplicado à realidade urbana contemporânea. Contudo, não está assim tão perto de Ozu e de Mizoguchi.
Tal como já havia feito no longuíssimo Happy Hours e em Asako I e II, Ryûsuke Hamaguchi constrói um filme minimal, esquemático e poético. Trata de estabelecer a própria marcação do tempo. Encontramos o seu par em, por exemplo, Hong Sang-soo, realizador de culto sul-coreano. Mas Hamaguchi não leva tão longe a sua vertigem conceptual nem marcas tão fortes como a repetição sistemática da narrativa e dos elementos, como quem quer demonstrar que há muitas maneiras de contar a mesma história. Em Roda da Fortuna e da Fantasia, o questionamento e devaneio emocional fazem-se de forma mais subtil. Constrói três narrativas que retratam situações amorosas em diferentes momentos no espaço e no tempo, mas que acabam subliminarmente por abordar estados de espírito semelhantes ou complementares. Roda da Fortuna e da Fantasia > De Ryûsuke Hamaguchi, com Kotone Furukawa, Kiyohiko Shibukawa, Katsuki Mori > 120 minutos
7. “Mães Paralelas”, de Pedro Almodóvar
Em Dor e Glória (2019), Pedro Almodóvar devolvia Antonio Banderas ao seu cinema, com uma interpretação visceral, cheia de traços autobiográficos, fazendo um dos melhores filmes da sua carreira. Em Mães Paralelas, em menor medida, faz o mesmo com Penélope Cruz. E, apesar de não ser superior à sua última longa, este talvez seja o mais almodovariano dos filmes de Almodóvar, pelo menos desde Volver.
É almodovariano para começar no estilo da intriga. Embora se trate de um drama, em Almodóvar, géneros aparentemente antagónicos atravessam-se com naturalidade. Aqui, o realizador espanhol usa, sem pudor, ingredientes típicos da comédia, como os jogos de coincidências ou um sentido melodramático que se pode tornar irónico, para construir o trágico.
Ao contrário do que acontecia em Dor e Glória, em Mães Paralelas estão de volta as magníficas personagens femininas, que sempre nos seduziram, e atrizes a condizer. Assim acontece no eixo Penélope Cruz, uma mãe tardia e abandonada, e Milena Smit, atriz-revelação que Almodóvar trouxe das séries, no papel de uma jovem mãe, vítima de violação. Mas também encontramos, de novo, a insuperável Rossy de Palma, a mais almodovariana de todas. O tema-base é a maternidade, mas a maternidade associada à questão da identidade. E um dos pontos mais interessantes do filme é a forma como, em pano de fundo, numa segunda linha narrativa, se constrói outra, em volta dos fantasmas ou destroços da guerra civil. Mães Paralelas > De Pedro Almodóvar, com Penélope Cruz, Milena Smit, Rossy de Palma, Aitana Sánchez-Gijón > 123 minutos