Projetamo-nos sempre numa ideia do outro e de nós mesmos, e tentamos fazer vida da tensão entre essas duas forças – seja numa relação de dominação, sobreposição ou complementaridade. A partir de dados biográficos dos dois intérpretes, a atriz Beatriz Batarda e o bailarino Romeu Runa, em Perfil Perdido, Marco Martins explora essa alteridade na filiação, na forma como nos decalcamos nos nossos pais, os nossos pais em nós, de como formamos um só corpo, de como nos vestimos e colocamos a nu – com tudo o que isso tem de luz e sombra, ruído e silêncio, preto e vermelho. No palco do São Luiz vai haver muito vermelho, uma vez que, para Marco Martins, reflete as imagens fundadoras da figura do pai na cultura ocidental (como é o caso da crucificação de Cristo).
“A ideia originária deste espetáculo é a de que estas duas personagens nunca se fixam numa identidade, são umas vezes o pai, outras vezes o filho; umas vezes o masculino, outras o feminino”, explica Marco Martins. “Os corpos estão em constante metamorfose e isso permite-nos levantar muitas questões. Não só sobre género e escolhas, mas também sobre a forma como nos projetamos aos olhos dos nossos pais, de como o seu olhar sobre nós nos marca para sempre. Vês-te sempre aos olhos dos teus pais, mesmo que eles não existam, mesmo que nunca os tenhas conhecido.” O texto é uma colagem de escritos de uma série extensa de autores, que vão de Sophie Calle ou Siri Hustvedt a Kafka, Philip Roth, Gonçalo M. Tavares ou Manuel Vilas.
A técnica e a esbelteza dos movimentos de Runa, contrapostos à agressividade e ao grotesco dos de Batarda, dotam a coreografia de uma carga dramática densa, quase irrespirável. E isso sente-se ainda mais neste contexto de pandemia e incertezas, em que temos uma necessidade urgente de projetar o futuro, como uma tábua de salvação.
Perfil Perdido > São Luiz Teatro Municipal > R. António Maria Cardoso, 38, Lisboa > T. 21 325 7640 > até 20 dez, ter-sex 19h, sáb-dom 11h > €12