Lá fora o reboliço impera. Os carros, os elétricos, as pessoas e o vento de outubro cruzam a estrada, arrastando consigo fragmentos de conversas, rua abaixo, até ao Largo Camões. Dentro dos muros do centro cultural Brotéria, em Lisboa, o ruído do silêncio e a luz fria da manhã acolhem quem chega, num convite à contemplação. À esquerda, uma porta de madeira abre-se do chão até ao teto, deixando entrever uma grande raiz de laranjeira, trabalhada como escultura. É uma árvore, mas também uma obra de arte de Alberto Carneiro. É o homem e a Natureza, em simbiose, no centro de uma sala branca.
Tantas Vezes Digo ao Orvalho Sou Como Tu, exposição patente na galeria da casa de cultura dos Jesuítas, em parceria com a Fundação Fé e Cooperação, junta o trabalho de Alberto Carneiro ao de Sérgio Carronha, Rita RA e Baralho para compor um hino à Natureza. Nesta vénia profunda à casa comum, pressente-se ainda um pedido delicado a todos os que entram: parem e tomem consciência da obra de arte natural da qual fazem parte. “Não faz sentido pensar que somos seres estranhos, elementos externos que têm de tomar conta da Natureza como se fossem simples hóspedes e não fizessem parte dela”, afirma João Sarmento sj, responsável pela galeria.
Fazer parte da Natureza é precisamente a ideia que ecoa nas três salas da exposição, em obras que dão forma artística às preocupações expressas pelo Papa Francisco na encíclica Laudato Si: Sobre o Cuidado da Casa Comum, que nos recorda que “tudo está interligado”.
Além da raiz de laranjeira, a sala central é dominada por sete fotografias de Alberto Carneiro que celebram a simbiose entre arte, corpo e Natureza. As imagens ilustram a simplicidade de palheiros, hortas e pormenores de instrumentos agrícolas, olhando-a como beleza que desarma e da qual o artista quer fazer parte.
Na sala ao lado, Sérgio Carronha tentou agarrar o Sol entre as mãos e acabou por oferecer ao visitante um vislumbre dessa tentativa. Paredes e chão estão cobertos de marcações, feitas com barro, que mapeiam a trajetória da luz sobre os campos de Montemor, nos solstícios e equinócios, definindo o principio e o fim de ciclos que se perpetuam desde sempre, e para sempre, na Natureza.
Já Rita RA desafia-nos a comungar da descoberta que a Natureza, tantas vezes, oferece, coisas que não sabíamos sequer precisar. E fá-lo através de hóstias retangulares com o título da exposição impresso e o convite “vinde visitar e saborear”, lançado no Instagram. A poesia é o alimento que nutre o ser humano quando se deixa habitar pela Natureza.
Por fim, os Baralho trazem um frente a frente entre a matéria e a consciência da dimensão humana. Uma gravura do século XVI, da autoria do jesuíta Athanasius Kircher, na qual uma cidade é reduzida a dimensões ínfimas quando comparada com a explosão de um vulcão, encontra-se na parede oposta a várias garrafas que encerram diferentes tipos de solo português.
Do início ao fim da exposição, o primeiro encontro é sempre com as obras de arte, postas ao serviço da reflexão. Como sublinha João Sarmento sj, “mais do que expor artistas, expomos problemáticas”.
Tantas Vezes Digo ao Orvalho Sou Como Tu > Brotéria > R. de S. Pedro de Alcântara, 3, Lisboa > T. 21 396 1660 > até 28 nov, seg-sáb 10h-18h > grátis