“Para a Sofia, que chegou à Gramática Portuguesa/ e onde estava – feminino: poetisa/ escreveu: feminino: Poeta”. A dedicatória de Sebastião de Gama, escrita em 1949, está em destaque numa das salas da Galeria da Biodiversidade, recordando a recusa de Sophia de Mello Breyner Andresen em ser tratada como poetisa, por acreditar que o termo atribuía às mulheres um estatuto de menoridade face aos homens que também escreviam poesia. “Interessava-nos saber que pessoa se revela através da sua relação com os livros”, explica Martim Sousa Tavares, neto da autora e curador da exposição Pour ma Sofie que, até 10 de março, convida à descoberta do mundo de Sophia, a partir da sua biblioteca.
Umas férias na casa de família da Meia Praia, em Lagos, em 2015, estiveram na génese do projeto. Quando Martim procurava nas prateleiras algo para ler, encontrou um livro com a seguinte dedicatória: “Para Sophia este Levantado do Chão, sinal de sofrimento e de esperança, acto quanto possível poético – a grande admiração e amizade do José Saramago”. A curiosidade leva-o a folhear a restante coleção, composta por cerca de mil exemplares, na sua maioria primeiras edições, com dedicatórias de autores tão diversos como Teixeira de Pascoaes, Carlos Drummond de Andrade, Miguel Torga (o autor mais representado, com 27 livros), Eugénio de Andrade, Agustina Bessa-Luís, Jorge de Sena, Manuel Alegre, Herberto Helder, entre muitos outros. “Só identifiquei uma falha, um livro de Natália Correia, mas mesmo dela encontrei um cartão de boas festas”, conta Martim Sousa Tavares, que descobriu, ainda, postais, recortes, cartas, anotações e alguns escritos inéditos da autora (que serão entregues, a posteriori, à Biblioteca Nacional, para serem estudados e integrados no espólio que já se encontra depositado naquela instituição). Uma triagem intensiva (a exposição mostra 331 livros) por uma “biblioteca caótica”, com muitas pontas soltas, reveladoras elas próprias da personalidade de Sophia.
Espontânea, impulsiva e distraída, Sophia é capaz de aproveitar os espaços em branco dos livros oferecidos – alguns de considerável valor, como um exemplar único de Teixeira de Pascoaes – para dar largas aos seus poemas. “Há uma urgência tal na poesia de Sophia que agarra naquilo que está mais à mão para escrever”, sublinha o neto. “Não há surpresas, tudo se confirma”, acrescenta. “Percebe-se que foi uma pessoa muito coerente, esteve na vida tal como esteve na poesia.”
A exposição, com conceção da artista russa Oxana Ianin, recorre a diferentes formatos – fotografia, instalação e documentos – para traçar o perfil da poeta. Começa no local mais emblemático da Galeria da Biodiversidade, o átrio central, onde está suspenso o esqueleto de uma baleia azul, invocado no conto Saga, incluído no livro Histórias da Terra e do Mar. “É a metáfora perfeita de um espaço com uma ligação à ciência, mas com uma memória literária enorme que se pretende preservar”, nota Martim. Sob a sua vigilância, colocaram-se oito fotografias de dedicatórias, destacadas não pelo seu interesse em particular, mas pelo que informam sobre Sophia, sobre a sua relação com os autores ou sobre eles próprios. “Nota-se que era uma pessoa muito consultada, entregavam-lhe os manuscritos antes de serem publicados”, aponta o curador. Noutra sala, estão expostas as instalações: cinco volumes em forma de harmónica, onde se podem ver grande parte das capas dos livros e as respetivas dedicatórias, deixados abertos à interpretação. “Esta é a forma de mostrarmos a quantidade de pessoas, de diferentes gerações, que contribuíram para a criação desta biblioteca irrepetível.” Um painel, construído por Oxana Ianin, recolhe a palavra que mais se repete nas dedicatórias: admiração.
Há ainda vitrines com a poesia dedicada a Sophia – o caso mais interessante é o de Jorge de Sena, de quem foi grande amiga e correspondente, autor do poema A Sophia de Mello Breyner Andresen, enviando-lhe um exemplar de Pedra Filosofal –, outra sobre a sua faceta de tradutora e uma sobre os livros que regressam à antiga casa dos Andresen, lidos em criança numa destas salas. O desejo de Martim é que se aproveite o centenário do nascimento Sophia de Mello Breyner Andresen para transformar a Galeria da Biodiversidade (e o Jardim Botânico do Porto, que a rodeia) num polo de criação. O Jardim de Sophia, nome da celebração que durará até ao final do ano, conta com um prémio de composição musical inspirada na sua poesia, teatro infantil, dança, leituras encenadas e muito mais. “Estamos a tentar ser caleidoscópicos nas nossas escolhas, queremos fomentar o encontro dos artistas com esta grande criadora, cuja obra é tão vasta que deixa terreno fértil onde se pode semear e deixar crescer novas obras”. Para sempre, Sophia.
Pour ma Sofie > Galeria da Biodiversidade – Centro Ciência Viva/Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto > R. do Campo Alegre, 1191, Porto > T. 22 040 8000 > 25 jan-10 mar, ter-dom 10h-18h > Grátis