
O filme mostra o convívio de Mary Shelley com grandes personagens da literatura inglesa, incluindo o grande poeta Lord Byron, aqui apresentado como uma figura desprezível
Haifaa al-Mansour tornou-se conhecida por ser a primeira mulher saudita a realizar um filme. A sua longa-metragem de ficção O Sonho de Wadjda, estreada em 2011, era uma impressionante fábula social, retrato íntimo sobre a condição feminina numa sociedade ultramachista e fundamentalista. O filme, naturalmente, não foi rodado nas ruas de Riade, mas revela uma proximidade íntima e cúmplice com esse misterioso e impenetrável mundo dentro de portas das mulheres sauditas. Haifaa deixou de ter condições para viver no seu país de origem e foi acolhida nos Estados Unidos da América, prosseguindo a carreira de cineasta.
O maior espanto, aqui, é a inflexão temática. Ao segundo passo, Haifaa abandona totalmente o ambiente saudita e faz uma adaptação livre da biografia de Mary Shelley, escritora inglesa da primeira metade do século XIX, celebrizada por ser a autora de Frankenstein, ou o Prometeu Moderno (1818). É uma mudança tremenda. Uma produção de época, com uma comparativa infinidade de meios, e um contexto temporal e espacialmente distante d’O Sonho de Wadjda.
O filme é competente e emocionalmente cativante, mas sem grande deslumbre. A opção por um estilo mais próximo do mainstream desilude todos aqueles que pediam a Haifaa novas histórias do seu mundo escondido. Contudo, não há dúvidas de que nesta viagem no espaço e no tempo há também uma reflexão feminista. Mary Shelley é uma libertária fora da época, que viveu de forma escandalosamente livre para o seu tempo e logrou impor-se enquanto escritora numa sociedade em que as artes e as letras estavam praticamente vedadas às mulheres. Haifaa, vítima e heroína dos nossos tempos, encontra uma referência e uma inspiração numa heroína da Inglaterra do século XIX. Há uma identificação. E apesar da abissal diferença de meios e ambiente, desvenda-se uma linha, ou pelo menos uma lógica, de continuidade no trabalho de uma realizadora tão local quanto universal.
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Mary Shelley > de Haifaa al-Mansour, com Elle Fanning, Douglas Booth, Bel Powley, Maisie Williams > 120 minutos