
Este “outro lado da esperança” é o país de asilo – no caso, a Finlândia -, onde Khaled encontra uma receção cheia de contradições: um trambolho burocrático, ódio xenófobo dos movimentos extremistas, mas também muita gente boa
D.R.
Aki Kaurismäki é um dos mais desconcertantes realizadores da atualidade, tendo criado uma linguagem própria e consolidada, que se mantém de filme para filme, provocando uma agradável estranheza e tornando-o um cineasta de culto. Em O Outro Lado da Esperança, terceira parte da trilogia dos portos, isso torna-se claro. O finlandês resgata técnicas do burlesco para contextos inesperados. Há um minimalismo formal, quer ao nível dos cenários e da construção de cena que se aproxima do teatro. Por outro lado, há um grande trabalho sobre a contenção na expressividade dos atores, que revela um fino sentido de humor, mesmo quando não se trata de uma comédia pura. É como se o universo inteiro fosse povoado de Buster Keatons que não se colocam em situações banais de comédia, mas apenas no seu quotidiano, mantendo sempre, custe o que custar, aquela inalterável expressão. Kaurismäki cultiva a artificialidade do gesto, puro cinema, na criação de uma semântica própria, microcosmos onde tudo faz sentido.
O brilhantismo do finlandês ganha ainda novas proporções quando se trata de uma história tão profunda e bem contada quanto O Outro Lado da Esperança. O seu aparente minimalismo só se torna ingénuo para os ingénuos, pois a sua arte está em, com uma economia notável, abordar problemas profundos e complexos, como quem conta uma história para crianças. O contexto bruto e duro é a crise dos refugiados. Este “outro lado da esperança” é o país de asilo (no caso, a Finlândia). Khaled encontra uma receção cheia de contradições. Há um trambolho burocrático, ódio xenófobo dos movimentos extremistas (o crescimento dos “verdadeiros finlandeses” é assustador), mas também muita gente boa e sensível. O que Kaurismäki nos mostra, no seu estilo característico, com personagens-tipo, é que, apesar de tudo, há que ter fé na Humanidade. Um dos melhores filmes de 2017, tão otimista quanto pertinente.
O Outro Lado da Esperança > de Aki Kaurismäki, com Sherwan Haji, Sakari Kuosmanen, Ilkka Koivula, Janne Hyytiäinen > 110 minutos