Cartas da Guerra é a história de um amor brutalmente interrompido por uma guerra incompreensível. É a história de um médico que se descobre escritor nas Terras do Fim do Mundo. É a história de um homem que ganha consciência política entre as chagas dos seus camaradas. É um intenso e agonizante poema feito filme, sob o olhar de Ivo Ferreira. O realiza-dor, de 40 anos, adaptou a correspondência que António Lobo Antunes enviou à sua mulher Maria José enquanto serviu de médico alferes durante a Guerra Colonial, em Angola. As cartas transformaram-se em livro, em 2005, com o título D’Este Viver Aqui Neste Papel Descripto: Cartas da Guerra. E agora em filme. Um filme que respeita admiravelmente as palavras do autor, servindo-se delas para criar a estrutura que o atravessa e sustenta e dá margem para a recriação cinematográfica do realizador, que entendeu bem a profundidade do seu sentido poético.
Assim, um conjunto de textos selecionados é lido em off por Maria José. Esses textos são “ilustrados” por imagens que dizem, complementam ou contradizem aquilo que está escrito nas cartas. Esse constante jogo entre o que se diz e o que se vê, feito de forma pouco óbvia, é a maior riqueza do filme: um notável e surpreendente trabalho que revela grande intuição cinematográfica.
Cartas da Guerra desdobra-se em camadas de leitura. A história de amor é descrita no contraste entre dois mundos: a realidade presente brutal e castradora, o passado e o futuro fantasiados e paradisíacos. Há ainda, claro, a dimensão política, que se torna evidente nas conversas com o capitão (Ernesto Melo Antunes), mas também no teor de algumas linhas escritas. E depois a clara partida para uma loucura moribunda, para o espaço difuso onde se perde a sobriedade, o desespero impera e foge a razão. Um caminho para o abismo um pouco ao estilo de Apocalipse Now. Efetivamente, Cartas da Guerra é um filme de guerra. Mas nem por isso se desdobra em cenas de batalha ou altos atos de heroísmo. Desvenda o lado mais íntimo da batalha de cada homem consigo próprio e com o meio que o envolve, numa luta permanente pela sobrevivência física e psicológica. E através de um indivíduo iluminado (pelo seu olhar de escritor) se desvenda o drama de um batalhão, de uma geração, de um povo.
Cartas da Guerra foi rodado na província de Cuando Cubando, nas Terras do Fim do Mundo, em Angola. Uma produção muito complicada, com vários elementos da equipa a contraírem doenças e que só foi possível graças ao apoio da população local.
Cartas de Guerra > De Ivo M. Ferreira > argumento de Ivo M. Ferreira e Efgar Medina, a partir de António Lobo Antunes, com Miguel Nunes, Margarida Vila-Nova, Ricardo Pereira, David Caracol, Simão Cayatte, Cândido Ferreira > 105 min