O ano de 1997 marca um “antes” e um “depois” na vida de Bilbau. A maior cidade basca, com um passado industrial e de arquitetura escura, passou, praticamente de um dia para o outro, a ser um grande polo de atração turística – competindo com a charmosa San Sebastián, a 100 quilómetros, e a sua magnífica Praia de la Concha, bem no centro.
Esse dia foi 18 de outubro de 1997, o da inauguração do Museu Guggenheim de Bilbau, com a arquitetura icónica do norte-americano Frank Gehry, que continua, desde o primeiro dia, a não deixar ninguém indiferente. É um daqueles equipamentos culturais que funcionam como chamariz de visitantes, independentemente da programação. À sua frente tem estado, desde a fundação, o diretor Juan Ignacio Vidarte, que, em maio, anunciou que deixará o cargo no final deste ano.
O museu tem conseguido um bom equilíbrio entre exposições, que são verdadeiros blockbusters, muitas vezes com o apoio de grandes empresas (como El Arte de la Motocicleta, em 1999-2000, sobre a história das motos; uma mostra dedicada ao estilista Giorgio Armani, em 2021, ou, há dois anos, uma grande exposição sobre a indústria automóvel, pensada por Norman Foster), e uma atenção à arte contemporânea internacional, entre grandes referências e nomes menos conhecidos do grande público. O cosmopolitismo sem fronteiras impôs-se numa cidade que sempre se orgulhou muito da sua identidade.
Neste verão, quem passar por Bilbau e, além de um obrigatório passeio pelas ruelas do bairro antigo à procura dos melhores pintxos, for visitar o Museu Guggenheim vai poder conhecer profundamente um dos mais bem-sucedidos artistas japoneses da atualidade – a exposição Yoshitomo Nara estará patente até 3 de novembro. É todo um imaginário muito peculiar que ali se celebra, à volta do artista nascido há 64 anos, numa pequena localidade no Norte do Japão, e que tem agora, em Bilbau, a sua maior retrospetiva de sempre num país europeu.
À conquista do mundo
Olhando para os primeiros anos de vida de Yoshitomo Nara, nada faria prever que ele se tornaria um artista plástico global, conquistando admiradores em todo o mundo. Com dois irmãos bem mais velhos, pais que trabalhavam muitas horas (o pai e avô paterno eram sacerdotes xintoístas), o pequeno Yoshitomo ficava muito tempo sozinho, usando a imaginação para brincar e passar o tempo.
Talvez por isso ter sido enorme o impacto que teve sobre ele, ainda antes de completar 10 anos, a descoberta de uma rádio norte-americana (a Far East Network), criada para os militares dos EUA no Extremo Oriente – tendo acesso à vibrante cena musical dos anos 60 norte-americanos, de Bob Dylan aos Doors, mesmo que não conseguisse entender as letras.
A sensação de solidão que experimentou na infância (mas que não associa ao sofrimento e muito menos ao isolamento dos hikikomori, que passam anos em reclusão nos seus quartos nas grandes cidades) voltaria a fazer parte do seu quotidiano, quando, entre 1988 e 1993, estudou artes (depois de já ter feito uma licenciatura nessa área, em Aichi, no Japão) em Dusseldorf, na Alemanha, sem nada entender de alemão.
A arte era o seu código universal, o seu passaporte, e essa experiência abriu-lhe mundo (o artista alemão A.R. Penck foi, aí, um importante mestre para Nara). A sua carreira artística iria despontar após se mudar para Colónia, onde viveu até ao ano 2000.
À primeira vista, somos tentados a associar os icónicos desenhos e pinturas de Yoshitomo Nara, com as suas inquietantes figuras infantis de grandes cabeças, ao universo manga, a BD japonesa cada vez mais popular em todo o mundo. Nada mais errado. Não é aí que Nara se situa, reivindicando o seu lugar no mundo da pintura (mesmo reconhecendo algumas influências da iconografia japonesa de outros séculos, que também está relacionada com algumas correntes da BD nipónica).
Aos 64 anos, o japonês continua a cultivar uma atitude jovial, com algo de energia punk. A música rock, aliás, nunca deixa de fazer parte da sua vida (ouve-se, até, a sair de colunas na instalação My Drawing Room, de 2008, que simula o seu local de trabalho, com bonecos, desenhos e discos espalhados; e, na página do Guggenheim Bilbao no Spotify, pode-se escutar, por estes dias, uma playlist criada por Nara). O artista assinou, mesmo, capas de discos para bandas como os japoneses Shonen Knife ou os norte-americanos R.E.M.
Na conferência de imprensa, para jornalistas de todo o mundo, que aconteceu em Bilbau antes da inauguração da exposição, alguém ousou fazer ao artista japonês aquela pergunta óbvia, que pode ocorrer imediatamente a quem se cruza pela primeira vez com a obra de Nara: “Porque tem pintado obsessivamente, ao longo dos anos, estes retratos de crianças com grandes cabeças?”. A resposta é breve: “No dia em que eu souber responder exatamente a essa questão, deixarei de pintar.”
A VISÃO viajou a convite do Museu Guggenheim Bilbao