Atravesse-se a pé a Porta de Ródão – os carros ficam fora das muralhas –, e entre-se na vila de Marvão com os sentidos despertos. Às quatro da tarde, o calor faz-se sentir, mas o cheiro a doce paira no ar, sinal de que há novas fornadas de bolachas e de pastéis de castanha na Marvão com Gosto. “Sai por esta janela pequenina do lado da cozinha. É um verdadeiro chamariz e a melhor publicidade que nós temos”, diz Cristina Andrade que, com o marido Manuel, gere esta loja dedicada aos sabores tradicionais, onde há doces artesanais, compotas, queijos, enchidos e ainda artesanato.
É das mãos de Cristina, formada em Gestão Hoteleira e antiga diretora da Pousada de Marvão, que ganham forma as bolachas de sabores apetecíveis – aveia, caramelo e gengibre, chocolate preto e suspiro, castanha areada, coco, gengibre e limão –, feitas artesanalmente com “os mesmos métodos que as pessoas utilizam em casa”, e ainda os pastéis de castanha (€1,40), um doce tradicional preparado com puré de castanha, doce de gila e doce de ovos, que aproveita um produto endógeno da região, a castanha Marvão-Portalegre DOP. As fornadas vão saindo à medida que os doces desaparecem da vitrina, “para não haver excedentes e serem sempre frescos”, por isso, se a ideia é levar uma caixa para casa, aconselha-se a encomenda logo no início do passeio, para a recolher depois no fim, “senão corre-se o risco de não haver”, alerta Cristina.
A Marvão com Gosto fica de frente para a Porta de Ródão, no número 1 da Rua de Cima, uma das artérias que levam ao coração da vila. O caminho até ao castelo, um dos pontos mais turísticos e de paragem obrigatória, é feito sempre a subir, e o ideal é ir explorando travessas, ruas e ruelas. No início da Rua do Espírito Santo, ouve-se o burburinho de um grupo de turistas portugueses. Estão à porta da Mercearia de Marvão, o único estabelecimento do género dentro da muralha. Nas prateleiras, há produtos do dia a dia, essenciais para os habitantes da vila, mas também artesanato e produtos regionais, sabonetes de leite de burra, rebuçados de ovo de Portalegre, cochos e cerâmica.
“Abrimos a mercearia em 2011, a última tinha fechado uns anos antes, era uma coisa que fazia falta na terra, e, em 2013, a estalagem”, conta Catarina Machado, 41 anos, natural de Portalegre e residente em Marvão. A estalagem, com seis quartos de várias tipologias, é uma autêntica casa marvanense. Decorada com o mobiliário antigo, preexistente, é ideal para alojar famílias numerosas e viver, ainda que por uns dias, como se fosse daqui. “Marvão é autêntico, é tudo harmonioso e simples. Acho que é isso que torna esta vila especial”, diz Catarina que tem um novo projeto em mãos. Em meados de setembro, espera abrir uma padaria, umas portas acima da mercearia. “Vamos vender pão de castanha, boleima [bolo típico da região de Portalegre, feito com massa de pão, açúcar e canela], pastel de castanha, tudo feito por produtores locais e o mais artesanal possível”, garante.
Ali perto, está também a ganhar vida o restaurante Fago, de José Diogo Branco e de Daniel Boto, que começou com um supper club (clube gastronómico) no alojamento Casa dos Galegos, onde às sextas-feiras e aos sábados, de três em três semanas, serviam jantares. “A ideia foi sempre a de abrir um espaço próprio; contamos inaugurar lá para o final do ano.” Quem por essa altura voltar a Marvão, vai poder provar, no pequeno bistrô com cozinha aberta, as criações de José Diogo, baseadas em produtos locais, como o poejo, a castanha, a bolota e a carne de porco preto, e no receituário tradicional alentejano, mas tudo preparado com o toque pessoal do chefe. “Vamos brincar com os sabores e as técnicas, valorizar o produto e trazer outra frescura à cozinha alentejana”, explica.
Conhecer a vila implica muitas subidas e descidas, caminhadas feitas aparentemente sem destino, mas que invariavelmente acabam perto do Castelo de Marvão e da esplanada mais apetecível da terra, O Castelo Café Lounge, na Travessa da Corredoura. Neste cantinho fresco, toma-se um cocktail ou um granizado ao fim da tarde, bebe-se uma água ou come-se uma tosta, para repor energias e seguir caminho.
Por cima das nuvens
Como escreveu José Saramago, “De Marvão vê-se a terra toda…”. Estamos a cerca de 843 metros de altitude, no coração do Parque Natural da Serra de São Mamede, o território mais alto em todo o Alentejo, que não raras vezes fica acima das nuvens. A vila surpreende pela vista de 360 graus, que alcança Espanha, a serra da Estrela e Castelo Branco. Durante o confinamento, Catarina Machado e a família tiveram a vila quase só para si, e os passeios à volta da muralha passaram a fazer parte da rotina. “Este percurso mostra paisagens muito diferentes, a norte é pedra e mais seco, a sul é tudo muito verde e fresco, não se pode é ter medo das alturas”, avisa a proprietária da Mercearia de Marvão.
A Torre de Menagem do castelo é um autêntico miradouro – e se a subida custa, a vista, lá está, compensa o esforço. Tem uma das maiores cisternas (cerca de dez metros de altura e 46 de comprimento) e uma zona de baluartes que integra a candidatura das Fortalezas Abaluartadas da Raia a Património Mundial da UNESCO. As águias-de-bonelli andam sempre por aqui, e a região é também rota dos grifos. Para observar a vasta paisagem de outro ângulo, ainda da muralha, procure, junto ao parque infantil, um pequeno portão de ferro que dá acesso a um antigo ponto de lançamento de voo livre.
Regressando ao interior da vila, são vários os pontos de interesse a visitar, como a Casa da Cultura que ocupa os antigos Paços do Concelho, o maior edifício civil e onde se mostra, por exemplo, o artesanato tradicional, como o bordado em cascas de castanha, ou a antiga Igreja de Santa Maria que alberga o museu municipal. Antes de partir para fora de muralhas, faça-se uma pausa para descansar e retemperar forças numa das sombras do verdejante jardim de Marvão.
Há vida em Ammaia e na estação da Beirã
Seguindo a serpenteante Estrada Nacional 359, a poucos quilómetros de Marvão, chega-se à antiga estação de caminho de ferro da Beirã. Não se deixe enganar pelo sossego, porque aqui há adrenalina a correr nas linhas. Embora neste ramal já não circulem comboios, é possível passear sobre os carris nos quadriciclos da Rail Bike Marvão, uma ideia do casal Susana Torgal e Lenny Macleode. Nesta espécie de bicicleta adaptada, qual geringonça improvável, viaja-se a pedal sem qualquer ajuda mecânica. “Os percursos não são difíceis, mas há algumas subidas”, referem os responsáveis.
Os passeios são sempre acompanhados por um guia, e as questões de segurança explicadas antes da partida. O percurso mais pequeno tem 15 quilómetros e uma duração de duas horas, mas é no de 32 quilómetros que se percorre o ramal entre a Beirã e Castelo de Vide, duas bonitas e históricas estações do Alto Alentejo, e que se descobre de forma original o Parque Natural da Serra de São Mamede. No regresso, fique para beber um copo no antigo cais coberto que serve de sede à Rail Bike e que se transforma em bar ao fim do dia, de sexta a domingo.
Logo ali ao lado, no antigo edifício do restaurante da estação, fica a Train Spot Guesthouse, dos irmãos Eduardo e Eduarda Correia. “A estação ficou inativa em 2012 e, na altura, achei uma pena uma coisa tão bonita e com potencial ficar abandonada”, conta Eduardo, de 48 anos, que, em 2013, trocou Lisboa pela calma do Alentejo. A intervenção no edifício foi mínima, “o que se mexeu foi por uma questão de conforto; a traça é a original”, explica. E está à vista de todos. Do alpendre que dá para a desativada linha de comboio à sala comum, são muitos os pormenores a ter em conta nesta guesthouse, com sete quartos e dois apartamentos. Em breve, iniciará o programa de retiros dedicados ao bem-estar, uma nova forma de cativar hóspedes, quando o verão acabar e a temperatura baixar.
Quem também sabe da arte de bem receber é o casal Clare e Dewi, proprietários do Corkshack Marvão, um turismo rural e original, no coração da aldeia da Escusa. Num terreno onde há aveleiras, figueiras e oliveiras, este casal galês, a viver em Portugal há 27 anos, ergueu duas estruturas circulares de 25 metros quadrados, revestidas a cortiça, e telhados de colmo inspirados nas tradicionais choças da região. “O Corkshack é um lugar tranquilo, ideal para relaxar”, diz Clare. Sempre que há novos hóspedes a chegar, deixa alguns mimos para provarem, como figos, nozes e vinho. Para saborear a gastronomia da região, há bons sítios ali à volta, como o restaurante Sever Churrasqueira, na Portagem, onde as carnes grelhadas brilham na ementa. Guarde-se lugar para a sobremesa, pois no Centro de Lazer da Portagem, a caminho da cidade romana de Ammaia, está a carrinha da Vale da Aramenha, com os seus crepes feitos com farinha de castanha e recheios diversos. Vale a pena conhecer também os produtos desta marca, como a farinheira de castanha e o queijo de cabra e castanha.
Em 2019, passaram 14 mil visitantes pelas ruínas romanas de Ammaia, um terreno com 25 hectares, em São Salvador da Aramenha. Trata-se de um importante polo arqueológico, com um museu e uma zona ao ar livre, onde se observam vestígios desta antiga cidade, como é o caso de parte do fórum e da porta sul – e, com alguma sorte, alguma campanha de escavação que esteja a decorrer. Muito em breve, o museu da Ammaia terá um novo projeto expositivo, contam Joaquim Carvalho, arqueólogo, e Sofia Borges, diretora do museu, ambos a trabalhar há 25 anos neste polo que tem apenas 2% do seu total escavado. “As pessoas querem ver mais coisas, mas a arqueologia precisa de tempo e de dinheiro”, sublinham.
Em Castelo de Vide, a dez quilómetros de Marvão, também se encontram vestígios, mas judaicos. Aliás, a zona da judiaria é uma das mais bonitas desta vila, onde também se come e bebe bem. No Jerico, aberto em meados de 2019, os petiscos da dona Deolinda, como a desfiada de borrego, a sopa de tomate e as tiras de bacalhau em farinha de milho, enchem-nos a alma. Termine-se este passeio uns metros mais à frente, na Barona Craft Beer House, com uma das suas cervejas artesanais. E brindemos a este Alentejo altivo, pintado de verde.
Terrius: Uma loja que é uma verdadeira embaixada dos bons produtos da região
Há oito verões, os amigos Filipe Verdasca e Rita Martins pegaram num moinho de água singular, junto à praia fluvial de Portagem, e deram-lhe uma nova vida. A Terrius dedica-se à preservação de produtos silvestres através de processos tão simples e até ancestrais como a moagem, desidratação e conservas naturais. Assim nasceram subprodutos valorizados, como as farinhas de cogumelos, feitas dos restos das lâminas dos Boletus edulis desidratados, de castanha, das sobras do fruto pilado. As inovações não se ficam pelas farinhas. A mostarda de pimento, uma espécie de “ketchup” caseiro, dá para barrar no pão torrado ou para molhos de carnes assadas ou grelhadas e pratos de peixe.
As levadas que descem pela serra de São Mamede entram pelo moinho adentro. Passam por baixo da Sala das Mós, onde se realizam workshops, aulas de cozinha ou simples degustações, às quais se podem acrescentar visitas a produtores e provas de vinhos. O exterior verde e fresco, com o rio Sever a correr, é o cenário ideal para piqueniques com os produtos locais. S.C. Ed. Moinho da Cova, Centro de Lazer da Portagem, São Salvador da Aramenha > T. 96 690 8963, 96 907 7112 > seg-sex 9h-13h, 15h-18h
GUIA DE VIAGEM
VISITAR
Ammaia > Quinta do Deão, Estr. da Calçadinha, S. Salvador de Aramenha, Marvão > T. 245 919 089 > seg-dom 9h-12h30, 14h-17h30 > €3, até 12 anos grátis
Museu Municipal de Marvão > Na antiga Igreja de Santa Maria, reúne arte sacra, arqueologia e etnografia. Lg. de Santa Maria, Marvão > T. 245 909 132 > 10h-12h30, 13h30-17h > €1,90, até 12 anos grátis
Casa da Cultura de Marvão > Destacam-se as coleções de pesos e medidas, usadas para calcular os impostos. R. 24 de Janeiro, 1, Marvão > T. 245 909 137 > seg-dom 9h30–13h, 14h-17h30 > grátis
Castelo de Marvão > T. 245 909 138 > seg-dom 10h-19h > €1,50, até 12 anos grátis
DORMIR
Corkshack Marvão > Estr. da Casa Nova, 9, Escusa, Marvão > T. 93 798 0013 a partir de €85
Estalagem de Marvão > R. do Espírito Santo, 1, Marvão > T. 96 814 7862 > a partir de €45
Train Spot Guesthouse > Estação Ferroviária da Beirã, Lg. da Alfândega, Beirã, Marvão > T. 96 323 7402, 91 257 6378 > a partir de €45
COMER/COMPRAR
Jerico > Lg. Capitão Salgueiro Maia, 33, Castelo de Vide > T. 245 901 753 > seg-ter, sex-dom 12h-23h, qui 17h30-23h
Marvão com Gosto > R. de Cima, 1, Marvão > T. 91 870 6296, 91 459 2816 > seg-dom 10h-19h
Mercearia de Marvão > R. do Espírito Santo, 1 A, Marvão > T. 245 993 059 > seg-dom 9h-13h, 14h-19h
Barona Craft Beer House > R. de Bartolomeu Álvares da Santa, 42, Castelo de Vide > seg-dom > 9h-1h
O Castelo Café Lounge > Tv. da Corredoura, 1, Marvão > T. 245 993 060 > seg-dom 9h-23h
Sever Churrasqueira > R. Nova, 24, Portagem, Marvão > T. 245 993 458 > seg-ter, qui-dom 12h30-15h30, 19h30–22h15
Vale da Aramenha > Centro de Lazer da Portagem, Marvão
FAZER
Rail Bike Marvão > Estação Ferroviária da Beirã, Lg. da Estação, Beirã, Marvão > T. 91 298 7639 > €20 por pessoa (15 km), €45 (32 km)