Veio mesmo a calhar o céu limpo, nos primeiros dias de dezembro, para a apanha da azeitona que, há semanas, aguardava nas oliveiras por uma trégua de chuva. E nem as temperaturas frias, com mínimas nos quatro graus, impediram que muitos dos 170 habitantes de Cabeça andassem o dia inteiro nos olivais, a varejar e a carregar sacos às costas. Só hão de regressar a casa lá pelas quatro da tarde, quando o sol começa a pôr-se nesta aldeia encravada na parte sul do Parque Natural da Serra da Estrela. Mas o trabalho não ficaria por aqui. Pelas 17h30, já noite cerrada, encontramos alguns dos moradores, sobretudo mulheres, a entrelaçarem ramos de pinheiro Pseudotsuga nas coroas e grinaldas que hão de enfeitar as ruas até ao primeiro dia de janeiro. Desde 2013 que Cabeça se transformou em Aldeia Natal – a iniciativa resultou de uma candidatura ao programa de Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Seia – e, a partir de então, tem tido cada vez mais visitantes.
“Está quase tudo pronto”, garante Maria do Carmo, 72 anos. Desde o início de novembro que, depois de rezar o terço na igreja, ruma ao pavilhão da aldeia para se juntar ao grupo, em torno dos enfeites produzidos com materiais naturais, ao som da Rádio Clube de Arganil. “Em agosto, começamos a pensar nas decorações, em setembro apanha-se o que sobra da agricultura, como os casulos do milho [que se transformam numa estrela] e as vides da poda das videiras. Depois, vamos à procura de musgo, carvalho, madeiras…”, descreve Nuno Silva, um dos coordenadores desta festa genuína, em que o Pai Natal não entra. “Dá trabalho, mas a aldeia fica bonita”, diz, orgulhosa, Fernanda Dias, 66 anos, enquanto guarda os fios de lã que sobraram do desfiar de camisolas sem uso e que serviram para enrolar as bolas de giesta. As casas de pinho e de castanheiro (uma novidade deste ano) de Luísa Dias e de José Marques hão de ficar bem no jardim do largo da igreja velha. Mais tarde, encontraremos os dois artesãos na loja da Rua da Liberdade, cheia de outros objetos (presépios, bonecas serranas, pinhas que se transformaram em animais), que os dois se entretiveram a fazer à mão, ao longo do ano, usando burel, linho, madeira, pedra e cascas de frutos. Ali, a dois passos, na Casa da Montanha, está posta a mesa, tal qual uma ceia de Natal à antiga, enfeitada com giestas, pinheiro e castiçais de madeira.
“É a comunidade que dá vida à aldeia. É uma festa sustentável e um exemplo de economia circular”, não se cansa de repetir Célia Gonçalves, a técnica da Associação de Desenvolvimento Integrado da Rede de Aldeias de Montanha (ADIRAM), que conhece todos os moradores pelo nome. É ela quem nos acompanha por encostas, vales, levadas, curvas e contracurvas a ligarem Cabeça, Loriga, Alvoco da Serra e Lapa dos Dinheiros, quatro das 41 Aldeias de Montanha que se estendem pelos concelhos de Seia, Oliveira do Hospital, Guarda, Manteigas, Celorico da Beira, Gouveia, Fornos de Algodres, Fundão e Covilhã. Certo é que, desde que Cabeça se enfeita para o Natal, as visitas se prolongam por todo o ano. “Até já temos dois alojamentos locais”, congratula-se Nuno Silva, pai de Valentim, com sete meses, o habitante mais novo desta aldeia, de ruas empedradas e casas de xisto, que vive da agricultura em socalcos. “Cabeça é um exemplo do que se pretende para as Aldeias de Montanha. Não estamos a falar de aldeias-museus; são aldeias vivas que têm pessoas que recebem, e nós queremos conquistar novos moradores”, dir-nos-á mais tarde Francisco Rolo, presidente da ADIRAM. Apostar nos produtos endógenos, no turismo da Natureza e, sobretudo, na aproximação dos visitantes à “vivência das comunidades” são os grandes eixos traçados para as Aldeias de Montanha, cada uma com as suas peculiaridades.
Um souto e uma gruta de morcegos
Pela manhã, antes de visitarmos Cabeça, já nos tínhamos deslumbrado com a beleza de Lapa dos Dinheiros, situada a sete quilómetros de Seia, a 700 metros de altitude, sobre o rio Alva e a ribeira da Caniça. O guia de montanha, Filipe Martins, levou-nos até à Ponte de Jugais, onde a central hidroelétrica (de 1947), que faz parte de um conjunto de centrais em cascata desde a Lagoa Comprida, ainda turbina (produz energia). “Aquele souto é obrigatório”, afirma Filipe, apontando para um imenso bosque primitivo de carvalhos, castanheiros (no passado, a castanha substituía a batata), azevinhos, gilbardeiras e madressilva. “É um dos locais mais ricos, com 800 espécies de flora identificadas.”
O silêncio é interrompido pelo chilrear do melro de água, “espécie que a maior parte dos observadores de aves em Portugal nunca viu”, acredita Filipe, daí que o birdwatching possa ser, na região, uma aposta futura. Para já, há 15 percursos pedestres, assinalados pela ADIRAM a partir de caminhos de montanha, sendo o da Caniça, para onde iremos a seguir, um deles. Uma pequena rota circular de sete quilómetros (2h45 de duração), com início e fim junto à igreja matriz de Lapa dos Dinheiros, que atravessa a ribeira da Caniça (no verão, procurada como praia fluvial), cascatas e, de caminho, ainda passa pelo Buraco da Moura. Trata-se de uma gruta granítica, na qual mora uma grande colónia de morcegos-de-ferradura, “onde foram encontrados vestígios de ocupação humana de há cinco mil anos”, explica Filipe. Com mais tempo, muitas outras histórias haveria para nós descobrirmos.
Quem quis manter a ligação a Lapa dos Dinheiros foi Nuno Bravo, 49 anos. Com a mulher, Maria Manuel (natural da Bairrada), o casal abriu as Casas da Lapa, em 2005, e as Casas do Soito (T2 e T3), em 2007, dois projetos turísticos nascidos a partir da reabilitação de casas em ruína. Fechadas há cinco anos para renovação, as Casas da Lapa reabrem em janeiro como “hotel de aldeia”, com 15 quartos (sete são suítes), spa com aromaterapia, piscina interior e exterior, biblioteca e um restaurante de gastronomia regional com toque contemporâneo. A decoração é um bom exemplo da identidade da região: madeira e granito, sofás em burel e carpetes com fio da serra da Estrela. Lá fora, uma horta e animais de quinta dão continuidade ao projeto que quer ligar os visitantes à “agricultura de subsistência da aldeia, facilitando a compra dos seus produtos”, justifica Maria Manuel, professora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra. Em 2020, aliás, Lapa dos Dinheiros (Seia), juntamente com Alvoco das Várzeas (Oliveira do Hospital) e Videmonte (Guarda), serão as primeiras Aldeias de Montanha, “com espaços de coworking, a pensar nos nómadas digitais que aqui se queiram inspirar”, revela Francisco Rolo, da ADIRAM.
Caminhos de memórias
Às 10 da manhã, junto à Estrada Nacional 232 que nos levará a Loriga, encontramos Fernando Ferreira, 78 anos, com o seu rebanho de dez ovelhas de raça bordaleira. Já foram bem mais (chegaram a ser 80), mas a idade obrigou-o a abrandar o ritmo. As que tem “bastam para fazer uns queijos”, conta o pastor. Aceleramos para Loriga, porque Fernando Mendes, 52 anos, dono da Loripão, a única padaria da vila (tem 600 habitantes e, por isso, é uma das maiores Aldeias de Montanha), está quase a pôr no forno a broa de milho e o bolo negro de Loriga. A receita, antiga, leva muito leite, açúcar, ovos, farinha (do moleiro Adelino Boto, de Sandomil, no vale do Alva) e canela, e tem honras de confraria. Além do pão que distribui pela serra, Fernando e a mulher, Helena, ainda se meteram “na aventura” de fazerem bombons de chocolate com plantas da região (alecrim, hortelã-pimenta, rosmaninho, sementes de girassol) e queijo da serra. Loriga já não tem as dezenas de fábricas de lanifícios de antigamente (só uma funciona), mas essa memória perpetua-se a cada esquina.
Quem quiser meter pés a caminho de uma das várias rotas pedestres – Ribeira de Loriga, Eira e Garganta de Loriga (a mais longa, com 9 quilómetros) – perceberá “a importância económica desta vila em outros tempos”, lembra o guia Filipe Martins. “Estas rotas acompanham as levadas, os moinhos de água, a eira em que eram malhados os cereais, onde as populações se juntavam nas desfolhadas e secavam as lãs ao sol. Levam as pessoas para o imaginário do trabalho agrícola destas aldeias”, continua. A conversa é feita à mesa do restaurante O Vicente, gerido pelos irmãos Patrícia e Hugo vai para 15 anos, enquanto se saboreiam os produtos da região: morcela frita, farinheira, chouriço assado, grelos e, claro, o cabrito assado no forno, que só compete com o bacalhau com broa.
Foi a paixão por caminhadas que levou a engenheira civil Sónia Geraldo, 41 anos, e o marido, Miguel Madeira, 50, engenheiro de minas, a reconverterem uma antiga escola primária num hostel de montanha. O Feel Nature abriu há um ano, em Loriga, a pensar nos caminhantes (e não só). Com quatro quartos familiares e quatro camaratas (10 camas/cada), cozinha partilhada, sala de estar e, em breve, uma pequena oficina de bicicletas para quem faz trilhos de BTT, este projeto aposta na sustentabilidade através de sistemas de poupança de água, zero plástico e painéis fotovoltaicos para o aquecimento. Mantiveram-se os quadros de ardósia de outrora e aqui ainda se fomenta a aprendizagem: os quartos e as camaratas têm o nome (e a história) das indústrias de lanifícios da região, tal como as artes a elas associadas: a lançadeira, a bobinadeira, a cardadeira e a urdideira. “Queremos que se continue a aprender”, afirma o casal.
A aldeia onde nasce o verão
De Loriga partimos para Alvoco da Serra, 12 quilómetros adiante, não sem antes passarmos pela praia fluvial. No verão, acotovelam-se os que querem banhar-se nestas águas naturais no vale do antigo glaciar. Mas que é bonita, lá isso é. Água e pastos verdes é o que não falta ao longo da ribeira de Alvoco. Houvesse as cabras e ovelhas de antigamente, gente para cultivar a terra e talvez João Belarmino, o sacerdote-guardião de Alvoco da Serra, não tivesse de fazer estas contas: “Em 1913, nasceram 57 pessoas; em 2013, nenhuma. Já cá viveram mil e tal, na época das fábricas de lanifícios.” A freguesia tem pouco mais de 400 habitantes, mas são apenas 120 os que vivem nesta aldeia. Mesmo assim, Gina Brito, a presidente da junta, não se conforma por não conseguir ali instalar um multibanco. “Fico triste quando me debato com estes problemas da interioridade”, lamenta.
Apesar disso, a aldeia “onde nasce o verão, por causa da festa do Solstício [a 23 de junho] inspirada nas levadas, em que as pessoas faziam as regas iluminadas com lampiões”, conta-nos Célia Gonçalves, tem duas mercearias, um café, um posto médico, dois pequenos museus, um moinho (chegou a ter 20), oito fontes com água a correr, uma piscina, praia fluvial e uma sociedade recreativa, onde os habitantes convivem. Calcorreando as ruas, descobrimos sinais da comunidade judaica, inscritos nas ombreiras das portas das casas. “Já contei uns 20”, revela João Belarmino, 88 anos, com quatro livros escritos sobre a terra. A Casa-Museu de Alvoco da Serra, que recria os usos e costumes de uma família de outros tempos, merece uma visita. À entrada, escutam-se as histórias das gentes da aldeia, em depoimentos recolhidos por Luís Antero, paisagista sonoro e um dos únicos recoletores do património sonoro do País.
Para brindar à região, porque não com o primeiro gin de montanha, o Montês, criado por João Pedro Borges, desde 2017, a partir de ensaios com botânicos destas paragens, como as bagas de zimbro, as flores de carqueja e de urze. Na sua nova destilaria, em Alvoco da Serra, juntamente com a aguardente de marmelo, já fermenta outra novidade: uma vodca feita a partir de medronho.
Nesta “viagem no tempo às aldeias das nossas memórias onde o silêncio é regenerador”, como bem nos tinha avisado Francisco Rolo, o presidente da ADIRAM, o tempo passa mais devagar. E não é isso, afinal, o que todos procuramos?
TOME NOTA
VER
Aldeia de Cabeça
Até 1 de janeiro, na aldeia que se enfeita para o Natal, há um Mercado de Natal (28-29 dez, sáb-dom, 14h-20h; 25 dez-1 jan, todos os dias) serve petiscos da região: enchidos, queijos, lagaradas (bacalhau, batata a murro e couve-portuguesa), licores caseiros, vinho quente, broa e bolo negro de Loriga. Durante este mês, também a Rede Aldeias de Montanha tem ali uma loja temporária, em que se vende um pouco do que se faz na região. Do programa constam concertos diários e várias oficinas: Feltragem a Seco (27 dez, 15h), Sabores do Bosque (28 dez, 17h; 29 dez, 16h30), Sabores Tradicionais (30 dez, 16h30), Cestaria (28 dez, 14h30). Quem queira conhecer a região a pé, conte com o percurso pedestre Rota dos Socalcos (27 dez, 11h) e o 3º Trail Aldeia Natal e Caminhada de Fim de Ano (29 dez, 10h). Ambos requerem inscrição prévia em www.cabecaaldeianatal.pt. E porque se trata de uma festa sustentável, convém não esquecer de levar o lixo e os desperdícios para depositar nos ecopontos urbanos. Cabeça agradece.
ADIRAM – Associação de Desenvolvimento Integrado da Rede de Aldeias de Montanha > Lg. Dr. António Borges Pires, Seia > T. 238 310 246 > www.aldeiasdemontanha.pt
Passeios > Filipe Martins, guia de montanha, organiza passeios pela serra da Estrela: caminhadas pelas aldeias de montanha (€15/pessoa), circuito automóvel com pequenas caminhadas (€25/pessoa, inclui almoço). > T. 96 451 9442
COMER
Restaurante O Vicente > Av. Pedro Vaz Leal, 4, Loriga > T. 238 953 127 / 96 966 7032 > seg-dom 12h30-15h, 19h30-22h
Café Restaurante Império
É restaurante e pastelaria, onde se pode provar os queques de castanha que venceram o concurso da Festa da Castanha, na Lapa dos Dinheiros. Av. Augusto Luís Mendes, 15, Loriga > T. 238 951 203 > seg-dom 8h-2h
Loripão > Av. Augusto Luís Mendes, 14C, Loriga > T. 238 951 070 > seg-sáb 6h-19h, dom 6h-12h
Café Dias > Único café na aldeia de Cabeça, aqui se serve sanduíches de queijo da serra e de presunto (€2). Lg. da Malhada, 5, Cabeça > T. 238 953 215 > seg-dom 8h-24h
Casa-Museu Alvoco da Serra > Recria uma casa típica desta aldeia nos anos 30-40 do século XX, através de mobiliário, trajes e alfaias agrícolas da época. > R. de São Pedro, Alvoco da Serra > T. 96 587 2960 > seg-dom 10h-19h > grátis
DORMIR
Casas do Soito > R. Eira do Costa, 10, Lapa dos Dinheiros > T. 93 555 0500 > a partir de €120
Loriga Hostel – Feel Nature > R. Prof. Egas Moniz, Loriga > T. 96 158 5919 > quartos familiares: a partir de €40; camaratas: €17,50
Abrigo do Outeiro > Escadinhas do Outeiro, R. 25 de Abril, Cabeça > T. 96 533 3993 > €60 (quarto duplo)
Casa da Ponte > Antiga fábrica de tecelagem, com 10 quartos e um apartamento T2. > Av. do Progresso, 1, Alvoco da Serra > T. 238 954 253 / 96 721 6050 > quartos: a partir de €55; apartamento: €100