Há crónicas que são episódios da vida quotidiana e que, por isso mesmo, podiam fazer parte de um diário: “Chegada há menos de duas horas de Genebra, levantara-me muito cedo para fugir ao trânsito da A5.” Há crónicas que dão vida a personagens da ficção (como Shane) e outras que, pelo contrário, ficcionam figuras da vida real (como Luís, ex-marido da escritora). E há crónicas que regressam às memórias da baía de Luanda, de onde se olha a metrópole sem as marcas do que viria a ser a ponte aérea, os hotéis dos retornados, os apoios concedidos pelo Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN).
São muitos os registos das crónicas de Dulce Maria Cardoso, que os leitores bem conhecem das páginas da VISÃO e que agora, uma vez mais, chegam ao formato de livro. Com a chancela da Tinta-da-China, o segundo volume de Autobiografia Não Autorizada reúne 57 textos da autora d’O Retorno, publicados na VISÃO entre maio de 2021 e julho de 2023.
Dulce Maria Cardoso iniciou-se no género da crónica em abril de 2019. Desde então, assina duas vezes por mês, revezando-se com José Eduardo Agualusa e Mia Couto nas páginas iniciais da VISÃO.
Como a escritora explicou, em entrevista, poucos meses depois da sua estreia, o nome das crónicas – Autobiografia Não Autorizada – está relacionado com o facto de lhe interessar “esse jogo entre a verdade e mentira”. “Acho sempre que a melhor maneira de contar a verdade é inventar a melhor mentira que a sirva. Além disso, também gosto muito de brincar com os meus dados biográficos. Todos escrevemos a partir de nós próprios, das nossas vivências, mesmo que depois não as reproduzamos de forma literal”, acrescentou ainda.
Num texto que acompanha o livro agora lançado (impresso na contracapa, em jeito de aviso ao leitor, para que não se vá ao engano), Dulce Maria Cardoso regressa ao tema. Afirma: “Talvez tivesse sido melhor começar por falar da decisão de me usar como personagem: tendo em conta que, numa crónica, se espera que o autor esteja mais declaradamente presente, este seria o sítio em que experimentaria não fugir de mim.”
E mais adiante: “Não estou sozinha, nunca estive sozinha, não sei estar sozinha. Não quero estar sozinha. (…) O que escrevo é iluminado pelos que amo, são eles que escrevem o que escrevo.” Enternecedor sentido de autoria, dir-se-ia.