Rafael Gallo poderia usar para si a famosa epígrafe que Saramago escreveu em A Viagem do Elefante: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam.” A sua vida tem sido uma sucessão de altos e baixos que, no entanto, o foram aproximando do que mais quer: escrever. Nascido em 1981, em São Paulo, Brasil, e formado em Música, escreveu um primeiro livro de contos rejeitado por várias editoras. Mas depois ganhou o Prémio SESC de Literatura 2012. Estreou-se no romance com Rebentar (2015), também premiado, mas não se afigurava possível viver só dos livros. Teve de fazer pela vida. E quando tudo parecia desaguar num mar de dúvidas, encontrou o tom do romance que o levaria ao Prémio Literário José Saramago, atribuído no ano passado, no âmbito das comemorações do centenário do escritor. É o primeiro autor a ganhar pelas novas regras (agora só para romances inéditos) e uma nova voz a descobrir. Anatomia de uma tragédia, Dor Fantasma é uma viagem às profundezas de um pianista que perde uma mão, sem nunca perder a sua idiossincrasia, a sua arrogância e o seu mau feitio.
Qual foi a primeira nota deste romance?
A busca de uma nova história. Em 2016, eu já tinha publicado um livro de contos e um romance, e andava nessa procura. Foi uma altura muito complicada na minha vida. Dava aulas, trabalhava na área da música, cursava um mestrado, tinha algumas dificuldades financeiras. Nada descolava, e a fazer tanta coisa diferente sentia que era obrigado a uma ginástica mental muito grande.
O cenário ideal para grandes mudanças…
Exato. Pensei: “Se me sinto realizado com a literatura, está na altura de arriscar.” Deixei tudo, incluindo a música, e encontrei um trabalho que me pagasse as contas. No fundo, para limpar a cabeça e me permitir uma dedicação maior à escrita. Acabei a concorrer a um concurso público para escrevente num tribunal judiciário. Ou seja, estabilidade e dinheiro ganho com dias a tratar de burocracias.
Deu-se bem?
Foi um choque, um trauma mesmo, sobretudo no início. Mas foi aí que me surgiu a ideia de um artista que deixa de ser artista. Talvez pela minha ligação à música, chegou-me a imagem de um pianista amputado. Na verdade, a ideia de um criador impedido de criar era a minha situação naquele momento.
Em que sentido?
Era como me via ali, no tribunal, a tratar de papéis nada literários. E isso começou a mexer com a minha identidade. Ao refletir sobre isso, percebi que aquela era a história que eu tinha de contar, juntando-lhe, claro, outros temas. Não só a de um artista que deixa de o ser, mas esse choque de alguém que perde a definição do próprio eu.
Pergunta-se muito aos escritores o que há de autobiográfico num romance. Aqui, não havendo nada (não é pianista, não perdeu uma mão, não tem a personalidade desse pianista…), há tudo?
É o que Caetano Veloso costuma dizer: “Todas as minhas canções são autobiográficas, até as que não são.” Vejo a minha escrita assim. Claro que seria muito diferente, sem graça e chato, se eu contasse o meu enfadonho ingresso no mundo da burocracia. Mas ao criarmos uma máscara, uma personagem como o Rómulo Castelo, tudo fica mais forte, mais potencializado. A ficção fala melhor sobre a vida real do que um retrato fidedigno.
Mas o que o interessou na imagem do pianista, grande intérprete de Franz Liszt?
Também foi uma surpresa para mim. Eu venho da música popular, do adolescente que queria ser rock star, da bossa nova. Estudei música clássica na faculdade, mas não domino esse mundo inesgotável, incluindo algumas das músicas citadas no livro. Tive de as conhecer melhor. Mas interessava-me a figura do músico erudito, com toda a sua dedicação e o seu rigor, e explorar a contradição que há na música clássica.
Que contradição é essa?
É um mundo artístico, por norma progressista e aberto, mas muito fechado em algumas áreas, com um peso muito forte da tradição. O compromisso com o passado, que é um valor legítimo, é enorme. A arte também devia significar liberdade: não tocar Mozart daquela forma, mas de qualquer outra, cruzando-a até com novas sonoridades. O Rómulo Castelo encarna tudo isso: a regra, a rigidez, o conservadorismo, nada do que se espera de um artista.
O romance explora muito a tensão entre a vida prática e a vida artística. Também a sente como criador?
Essa tensão existe sempre. Ter um emprego, relacionamentos, família, um animal de estimação, uma casa para cuidar… Tudo faz parte, ninguém consegue, nem deveria, isolar-se a ponto de não ter de lidar com nada disso. É mais um dos exageros do Rómulo Castelo: tentar uma vida pura para criar uma arte pura. Mas isso, como se sabe, não existe, nem na arte nem na vida.
As idealizações do Rómulo Castelo são, na verdade, a fonte da sua tragédia…
Completamente. Aliás, esta foi a primeira história que escrevi para a qual já sabia o fim. Normalmente, há um trabalho de pesquisa que se desenvolve ao correr da escrita. Aqui, a tragédia estava anunciada desde o início. Os seus sonhos de glória acabam inevitavelmente no isolamento e num mundo cada vez mais fechado. Aí, a derrota é inevitável.
Quis encontrar o lado humano dessas figuras?
Foi o desafio do livro. Trabalhar com protagonistas detestáveis é difícil e ingrato. Não queria que o leitor olhasse para o Rómulo apenas com desprezo ou sadismo, o que por vezes é inevitável. Através da amputação física, quis evidenciar a psicológica, mostrar que em alguns casos o monstro tem a sua ferida. Não o desculpa, mas permite compreendê-lo, sobretudo neste tempo em que tudo é dividido entre bons e maus, preto e branco, certo e errado. As pessoas são complexas e é essa complexidade que interessa à literatura.
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NO PEITO DE UM DESAFINADO
No peito de um desafinado, diz a canção, também bate um coração. E no peito de um afinado, claro, mais ainda. Na arte de Rómulo Castelo, o protagonista de Dor Fantasma (Porto Editora, 280 págs., €18,85), não há uma nota fora do tom, uma tecla pressionada antes do tempo. Com ele ao piano, estala a perfeição. Mas a sua história seria enfadonha se nada perturbasse uma caminhada tão gloriosa. E é na introdução de andamentos dissonantes na vida do pianista que o talento do escritor brasileiro Rafael Gallo se faz sentir. O grande intérprete de Liszt será conduzido ao inferno pela infelicidade (um acidente que lhe tira uma mão) e pela incapacidade de reconhecer os seus erros, a redenção de toda a tragédia. É por isso que este romance nos esmaga e nos diverte, nos questiona e nos arranca gargalhadas, à medida que traça o contorno de uma fragilidade que o protagonista nunca reconhece como sua. Apenas o leitor.