1. Picos e Vales, de Márcia
Há uma maneira muito simples, direta e exata de definir este disco: são 11 canções “com letra e música de Márcia”. Ao sexto disco (contando com o EP de estreia, Márcia, de 2009) esta música já tem a sua voz, um lugar só seu na música popular portuguesa. Picos e Vales parece um disco feito com tempo, com cada canção a receber a melhor roupagem possível, em arranjos ricos e com subtilezas que as servem na perfeição e se vão descobrindo melhor a cada nova audição. Esta nova coleção de canções de Márcia vai da complexidade musical (embora tudo pareça simples) de O que Eu Ainda Não Sei, com as suas secções de cordas e sopros, à fórmula despojada de Esse Mundo Teu, só com Márcia na voz, coros e guitarra elétrica e versos como “Tu querias que eu cantasse algo bem mais divertido / Talvez que eu te sussurrasse alguma coisa ao ouvido / E eu não sei fazer, quem dera.” Na verdade, passa o disco a sussurrar-nos ao ouvido, rastos de histórias de partidas e chegadas, reflexões. As primeiras palavras do disco não podiam estar mais sintonizadas com os nossos tempos de medos e indagações: “Queres saber o que eu ainda não sei / ‘Vai ficar tudo bem?’ / Em cada rosto o breu de não saber e eu / não quero ceder.” Há um tom globalmente melancólico, e belo, que percorre todo o disco (e a voz de Márcia) em 2022. Mas há janelas com vista para a esperança: “Lembra / a dança somos nós quem faz”, ouve-se na última faixa.
2. I Love You, Cristal, de Golden Slumbers
As vozes de Cat e Margarida encaixam na perfeição, de uma forma que parece totalmente… orgânica. O facto de serem irmãs e de cantarem juntas desde sempre ajuda a explicar isso. Este álbum sucede ao EP de apresentação The New Messiah, lançado em 2016, e funciona como uma afirmação da dupla. A produção cuidada de Miguel Nicolau (Memória de Peixe, Bloom…) dá-lhe solidez e uma irrepreensível elegância. As suas dez canções enquadram-se, com primor, numa onda de indie pop/folk muito presente em várias latitudes nos últimos anos. Entre várias referências possíveis, fazem muito lembrar um clássico do género: The Noise Made By People (2000), de Broadcast, ou a mais recente Jessica Pratt. Mas o jogo das duas vozes é mesmo um dos grandes trunfos das Golden Slumbers.
3. Benefício da Dúvida, de Maria Reis
Uma das metades das Pega Monstro, que agitaram a cena rock lisboeta, no contexto da editora Cafetra, há cerca de dez anos, Maria Reis continua o seu percurso a solo. Mas neste novo disco pode ler-se na capa: “Com a participação especial de Júlia.” É um regresso da outra metade da banda e irmã de Maria (passando da bateria para um instrumento mais simples: o pandeiro). As novas sete canções de Maria viajam sem sobressaltos entre a energia elétrica grunge e a viola campaniça que B Fachada lhe emprestou. Todas soam àquilo que são: música que se começa a fazer porque se quer fazer música e ver o que sai. A atitude e ética inicial é punk, o resultado final nem por isso. Maria Reis fala de si e de nós num impulso de ação direta musical.
4. Cada Qual no seu Buraco, de Chica
Este EP tem o primeiro conjunto de canções editadas de Chica. E é francamente promissor. Enquadra-se na tendência recente de cantautoras que nos falam das nossas vidas em Portugal e no mundo (onde se enquadra, por exemplo, A Garota Não). Chica deu-se a conhecer, em 2020, com a orelhuda Brincar o Cão (“Cuidado que vem aí o cão / brincar com o meu direito à habitação…”), que é aqui recuperada num “arranjo em banda”. As letras são seguras, e escritas por alguém que tem coisas para dizer – mas nem sempre de forma literal ou no registo mais político dessa espécie de pequeno hit. Destaque para a consistência dos arranjos – a utilização discreta mas muito eficaz dos sopros, por exemplo – e todo o registo musical, que tem o dedo de Luís Severo.