1. Diários 1950-1962, por Sylvia Plath

Padece-se sempre de dilemas de consciência provocados pelo voyeurismo das gavetas alheias, perante um diário que não foi redigido com o objetivo de esculpir a posteridade. Sylvia Plath escreveu afincadamente páginas diarísticas desde os 11 anos até à data da sua morte por suicídio com gás do fogão quando tinha apenas 31, deixando obras como o tomo poético Ariel, ou o romance com laivos autobiográficos A Campânula de Vidro. Estes diários nada têm que ver com florescências de vaidade: a poeta e ficcionista escreve à flor da pele, confessional e implacável, não escamoteando vidinha, paixões, sessões de terapia, listas de boas intenções, a difícil convivência com as expectativas da época, os sonhos (certa vez, sonha que Marilyn Monroe lhe faz uma manicure), lutas literárias (“Tentar escrever uma página de diálogo por dia”), as paisagens descritas com minúcia pictórica, a “negra depressão”… Escrupulosamente editado por Karen V. Kukil, Diários 1950-1962 abrange os escritos a partir dos 18 anos num volume monumental “sem omissões, supressões ou correções”: aqui, foram transcritos integralmente 23 manuscritos originais, que abrangem os anos de estudante, o casamento com o poeta Ted Hughes (que a traiu com Assia Wevill), ou os dois diários selados, escritos entre agosto de 1957 e novembro de 1959, escondidos pelo marido até 1998. Esta edição é um ato de justiça… Relógio D’Água, 824 págs., €28,50
2. Breve História do Afeganistão de A a Z, de Ricardo Alexandre

O timing do livro mantém-se tristemente atual, há décadas, mas a recente reviravolta política no Afeganistão, que permitiu o regresso dos talibãs ao poder, em 2021, e o consequente retrocesso nas conquistas sociais, nomeadamente no que respeita aos direitos e às liberdades das mulheres, torna-o um aliado utilíssimo para (tentar) compreender um país em perpétua convulsão. Ricardo Alexandre, repórter que passou por vários cenários de guerra e atual diretor-adjunto da rádio TSF, usa uma prosa clara, a pesquisa e entrevistas no terreno para reconstruir um puzzle histórico, com particular atenção dada às últimas décadas – e sem usar paninhos quentes. “Os talibãs 2.0 podem ter telemóveis de última geração e comunicar pelo Twitter, podem estar em grupos de WhatsApp, mas aquilo que verdadeiramente os agrupa é a mesma visão medieval do mundo que já nos tinham mostrado há mais de 20 anos.” Oficina do Livro, 352 págs., €18,90
3. Morte no Estádio, de Francisco José Viegas

Poder-se-ia imaginar o “pessimista e desajeitado” Ramos a ruminar um espanto comedido: “Três décadas passadas, e ainda não fui posto em esquecimento…” A presente reedição comemora os 30 anos do romance policial concebido numa cama de hospital por Francisco José Viegas. Um livro invernoso que contribuiu para a galeria de personagens inesquecíveis com o inspetor Jaime Ramos, da Polícia Judiciária do Porto. Aqui, ainda a fazer contraponto ao extinto Filipe Castanheira, ele vai ganhando deixas ao longo de uma investigação que envolve um futebolista assassinado, amantes e outras ligações perigosas, um bar irlandês e uma postura filosófica que ultrapassa a lógica das provas. O autor assume ter projetado vícios pessoais neste agente: “Imaginei-o sempre rezingão e carregado de defeitos, à imagem de Ben Gazzara em alguns filmes.” Ao leitor sem “urticária” para com o género cabe a melancolia do reencontro. Porto Editora, 296 págs., €16,60
4. Firmamento, de Rui Lage

Depois de Estrada Nacional, livro de poesia com que ganhou, em 2016, o prémio literário Ruy Belo e o da Fundação Inês de Castro, o autor entra num observatório especial. Enunciando um canto de si mesmo face à “energia primordial” da vida e do firmamento, Rui Lage contempla corpos celestes, neutrinos, Plêiades, todo o universo físico e metafísico. Nestes poemas, fala-se da Voyager II e do “cilindro cromado” da Apolo 11, dos astronautas Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Eugene Cernan, e até de Elon Musk – “o novo homem das estrelas”, que dá sucata estéril ao “silêncio dos espaços infinitos”. Dividido em três partes – Firmamento, Ciência Futura da Vida e Ode Lunar –, o livro faz uma aparente viagem temporal do futuro para o passado e adota um tom elegíaco sobre o tempo, o amor, a magia perdida das estrelas, a desumanização da nova realidade tecnológica, que até nos dará eternidade digital. “Do quente para frio vamos sempre./ Eis o tempo, a entropia.” Assírio & Alvim, 128 págs., €14,40
5. Chamadas Telefónicas, de Roberto Bolaño

Tchekov serve de figura de visitação, emprestando uma epígrafe que os leitores de Bolaño (1953- 2003) podem assumir como dele: “Quem pode compreender o meu terror melhor do que vocês?”. É que o chileno sempre fez dos bastidores e oficiantes da literatura cúmplices narrativos – e, aqui, também há autores, prémios literários, histórias dentro de histórias e ecos das obras passadas, tudo narrado com desenvoltura e personagens desassombradas a que nos habituou em tomos como Os Detetives Selvagens. Chamadas Telefónicas é a sua primeira coletânea de ficção curta por cá editada, 14 contos em que abundam expatriados, mafiosos, cinéfilos, vagabundos, homens e mulheres de armas, e pitadas de autobiografia: um jovem escritor, que já vendera artesanato para sobreviver, recorda a amizade com Sensini, um velho escritor sul-americano em Girona… Quetzal, 240 págs., €17,70
6. A Intransigente Defesa da Arte, de Oscar Wilde

À coleção Livros Negros, dedicada a textos malditos, chegam agora as perguntas e respostas do julgamento de Oscar Wilde (1854-1900), dandy excelentíssimo e produtor de máximas inspiradas, acusado em 1895 de relação imprópria com o jovem Bosie, lorde de pouca coluna dorsal que o abandonou à sua sorte. O trauma da prisão marcou Wilde, mas a verve resistiu ao interrogatório (“As opiniões dos filisteus sobre a arte são incomensuravelmente estúpidas”, lança perante o rótulo de livro perverso dado a O Retrato de Dorian Gray…), e a sua defesa pode hoje ser lida à luz dos manifestos pela arte e pelas liberdades sexuais. Na introdução, o editor Manuel S. Fonseca questiona se a transcrição de um “julgamento sórdido” pode ser considerada uma peça literária. Sendo Oscar Wilde a testemunha, “há o risco de tropeçarmos numa peça da mais sublime estética”. E a arte, diz, “irrompeu ilesa e triunfante” desse tribunal inglês. Guerra & Paz, 126 págs., €13
7. Quarenta e Três, de José Gardeazabal

O subtítulo reza assim: “Uma viagem pela literatura universal. Em busca do amor?”. O ponteiro do desconfiómetro desgoverna-se perante matéria tão descritiva, quando esta é produzida por um autor como Gardeazabal, a infernal, irónica e complexa máquina literária que irrompeu pelo panorama nacional há três romances… Valha-nos o ponto de interrogação, porta aberta para a metaliteratura. Guimarães Rosa dizia que “ler, na verdade, é mais do que descodificar um texto. A leitura eficiente vê o não escrito”. E Quarenta e Três pede ao leitor que puxe o lustro ao cânone literário ocidental para bem acompanhar a demanda discursiva de Hans Heller em busca da sua amada. Este protagonista (uma espécie de jovem Werther fundido entre Goethe e Barthes?) demora-se no caminho e em paisagens ambientadas em 36 obras maiores, em que cabem Rumo ao Farol, de Virginia Woolf, Ulisses, de James Joyce, Ruído Branco, de Don DeLillo, A Maçã no Escuro, de Clarice Lispector, A Invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, ou A Montanha Mágica, de Thomas Mann (todas listadas nas últimas páginas). Heller estuda o mapa e segue a direito – “Uma reta é uma reta é uma reta, nisso uma reta é como uma rosa”, lê-se, numa piscadela de olho ao poema de Gertrude Stein. Mas esta busca implica descaminhos, dúvidas, reflexões, porque, avisa o autor, este livro trata “da luta entre o amor e o sexo, e a suspeita de que não será o melhor dos dois a sair vencedor (…). Ela, Heller e o mundo entre eles, o triângulo é amoroso e imperfeito”. Relógio D’Água, 152 págs., €17