Pode um truque de magia manter a eficácia quando já se conhecem os fundos falsos da cartola de onde emerge um coelho branco? O mistério da identidade da escritora Elena Ferrante, o maior fenómeno literário da última década que suscitou uma liturgia literária coletiva, parece ter ficado solucionado no outono de 2016, por via de uma investigação inspirada nos métodos dos fiscais das Finanças. Recorde-se: o jornalista italiano Claudio Gatti vasculhou registos de propriedade e declarações de impostos, comparou rendimentos com datas de lançamentos, alinhavou certidões de nascimento, genealogias e geografias, e declarou triunfalmente que a mulher que se escondia por detrás do pseudónimo “Elena Ferrante” era, na realidade, a tradutora de alemão Anita Raja, nascida em Nápoles em 1953, filha de um magistrado napolitano e de uma judia polaca que escapara às garras nazis. Confirmação por parte da visada, essa nunca existiu. Referências à verdadeira biografia? Aqui e ali, umas linhas inconclusivas por ela espalhadas em crónicas ou em entrevistas à distância. O efeito mais retumbante, e talvez surpreendente, dessa aturada investigação e revelação foi que… não beliscou o “enigma Elena Ferrante”.
A aura mantém-se: a da escritora de best-sellers que continua a recusar revelar o rosto na época das selfies, a da operária literária capaz de transformar cada livro novo num acontecimento mundial, a da demiurga de universos femininos que retratam, minuciosa e magistralmente, as armadilhas, os estereótipos e as expectativas que flanqueiam as mulheres – como as da maternidade, da amizade, da memória, da família, da lealdade, das raízes, das aspirações… Ferrante é, igualmente, a pitonisa, ou a tradutora da agreste, genuína, populosa e palavrosa Nápoles, cidade-mãe, cidade-madrasta das suas protagonistas – personagem por direito próprio nesta paisagem literária. E, hoje, alvo de romarias turísticas em busca das pistas deixadas por Lenú e Lina, as duas amigas que tentam superar as suas circunstâncias sociais nos romances da chamada tetralogia napolitana.
Escrever realmente, com o passar do tempo, passou a ser dar forma a um permanente equilibrar-me/desequilibrar-me, arrumar fragmentos num encaixe e ficar à espera de o desmanchar
Elena Ferrante