“O passado transformou-se numa espécie de deus inacessível”, escreve a dada altura Manuel Vilas. E este é um lamento apenas possível pela lupa inexorável (usando uma palavra repetida até à exaustão por um professor que desagua na memória do narrador) do envelhecimento já pressentido. O protagonista deste pungente E, de Repente, a Alegria, tem 56 anos, a caminho dos 57, pai e mãe já desaparecidos, o que lhe dá uma consciência aguda da mortalidade e do tempo que passa (inexorável…); ele mesmo pai de dois filhos ainda a viverem na eternidade da juventude, casado com a segunda mulher, dez anos mais jovem.
Entretido numa correnteza de festivais literários e de pequenas viagens durante 2018, na esteira de um best-seller premiado, vai percorrendo o rio de memórias importantes e reflexões existenciais: a adoração pelo pai, um verão de formação nas montanhas em que aprendeu a fazer aviões de papel, o encontro com a atual companheira que o fez viver no Iowa, a importância do luxo para a felicidade, a essência da monarquia espanhola, a admissão de que o envelhecimento revela a solidão do ser humano, o eu perdido da juventude que é “um morto sem certidão de óbito”, o lixo da atual sociedade, o fazer amor que é “a maior das escuridões”… Manuel Vilas em modo arqueológico, ou psicanalítico, a Manuel Vilas.
Esta é uma peregrinação que avança pelos caminhos já trilhados no celebrado Em Tudo Havia Beleza (2018), e usa essa mesma escrita poética, descosida, nua: coração nas mãos e crença na beleza, isto é, na bondade, isto é, na alegria (que é “melhor do que a felicidade”), isto é, nisto de estar vivo e de procurar um sentido no viver. Um relato entre a exaltação e o desespero, a lucidez e a puerilidade, a euforia e a depressão assumida – o “anjo da melancolia que se revelou o anjo da clarividência”.
Este livro é, sobretudo, uma declaração de intenso amor aos pais, que se tornam postumamente os seus pontos cardeais para aferir a ordem do mundo, e aos filhos. “Entre pais e filhos também existem luas de mel”, escreve. Uma outra forma de tentar vencer a morte.