Quando as práticas do confinamento social se tornaram uma linha de defesa face à Covid-19, muitos defenderam o regresso à velhinha prática diarística como terapia para enfrentar um inimigo assustador. Poucos terão uma epifania semelhante à da holandesa Esther Hillesum (1914-1943), desaparecida em Auschwitz antes de cumprir 30 anos. Nascida numa família judia sem grandes preocupações religiosas, Etty usará a escrita como ferramenta para uma caminhada espiritual e de autodescoberta levada a cabo sob a ocupação nazi. E ainda que tenha sido contemporânea de outra autora de diário célebre, Anne Frank, e vivido a poucos quarteirões desta em Amesterdão, perto do Rijksmuseum, o seu relato não é estritamente um testamento do Holocausto.
Diário 1941-1943, escrito em oito cadernos quadriculados, é o testemunho intenso de uma jovem adulta “intelectualmente versada”, com uma adoração por Rilke e pela cultura russa, entregue ao “jogo” do amor e do erotismo, mas a lutar com uma “maranha” que a impede de “chegar ao âmago das coisas”. Uma narrativa avassaladora, passional, que descreve a procura do seu lugar no mundo – e culminará com a descoberta da exaltação existencial, e de Deus num sentido lato.
“Uma pessoa constrói o seu próprio destino a partir de dentro”, escreverá em fevereiro de 1942. No início do diário, ela vive um fascínio sensual e intelectual por Julius Spier, dedicado à psicoquirologia. E sente que se excede em “‘digressões’, em bacanais do espírito”. Em dezembro de 1941, sente-se “puxada para o chão por algo mais forte” do que ela, uma aprendizagem da reza, “o gesto mais íntimo”. À sua volta, o mundo familiar encolhe, acossado pelo nazismo. Etty voluntaria-se para o campo de Westerbork, paragem miserável antes dos campos de extermínio. Aí, entre sofrimento, descobrir-se-á como “coração pensante da barraca”, grata pelos momentos sob o céu, junto ao urzal, finalmente plena.

Diário 1941-1943 (Assírio & Alvim, 344 págs., €22), reedição do volume lançado em português em 2008, conta com prefácio de José Tolentino de Mendonça.