Podemos acreditar nos registos, oficiais ou oficiosos? Margaret Atwood usa-os em Os Testamentos para fazer a anatomia das rachaduras insidiosas em Gileade, o Estado teocrático cristão, fundado na servidão reprodutiva e na submissão das mulheres, que emerge numa América branca, conservadora e patriarcal (que ressoou na ascensão de Trump). Há um diário, anotações, capítulos apresentados como “transcrições de depoimentos de testemunhas” – este último, o mesmo artifício narrativo que a escritora canadiana usou em A História de Uma Serva, lançando a incógnita sobre o fim de Defred. Esse mistério é, aqui, revelado, tal como o da criação de Gileade, o da origem das temíveis Tias e o do destino da desaparecida bebé Nicole, “praticamente santificada” pelo regime, que agora usa também Meninas-Pérola, jovens missionárias de colar ao pescoço que andam aos pares, a recrutar e a espalhar brochuras sobre este reino de Deus…

Passados 15 anos, Os Testamentos tem três vozes diferentes: a doce Agnes preparada para ser esposa, mas que conhecerá a “profanação” da suposta santidade do sistema (o pai dentista da amiga Becka pousa-lhe a mão “como um caranguejo quente” no seio…); a inquieta Daisy, a crescer na liberdade do Canadá vizinho, que descobrirá o seu destino em Gileade; e a Tia Lydia, pilar do regime com direito a estátua, através de quem Atwood melhor usa a sua escrita controlada e lúcida. “Há dias em que me vejo como o Anjo Registador, reunindo todos os pecados de Gileade, incluindo os meus”, escreve Lydia num diário secreto, em que se vê a decadência interna da ditadura ou, spoiler alert, a monstruosa ironia de esta ex-juíza ter inventado, com outras ex-magistradas, as “leis, uniformes, slogans, hinos, nomes” do regime. Armas de submissão. Atwood adverte-nos que o futuro pode interpretar diferentemente estes registos. Se História e histórias são um material movediço, esta ficção mostra novamente como é fácil as democracias adoecerem.