Diz-se que a ficção científica tem o trunfo de poder construir um mundo inteiro sintonizado na imaginação, e Rosa Montero reiterou essa crença a propósito deste romance. O leitor de Os Tempos do Ódio encontrará, aqui, criaturas como Maio, um exilado translúcido e com “braços furta–cores” oriundo do planeta Omaá, ou a doutora Carlavilla, que tem um terceiro olho armazenador de dados a “velocidade petafulminante”, ou ainda a tatuadora Natvel, que muda de sexo devido ao uso excessivo do teletransporte. Além de cenários futuristas que denunciam leituras canónicas como Ursula K. Le Guin ou Philip K. Dick.
Mas há uma familiaridade na história protagonizada pela detetive androide Bruna Husky, corpo tatuado e olhos de réptil, aqui atormentada pela investigação ao rapto do amante, o inspetor Lizard. Este mundo é o nosso, mas já apanhado pelos fantasmas que, hoje, adivinhamos: nestes Estados Unidos da Terra, cheios de desigualdades sociais, Veneza está submersa e o “cartão de água” encarece 100% de um dia para o outro, porque a água potável escasseia; há um canal apresentado pelo meteorologista Apocalipse, que só anuncia catástrofes climáticas; usam-se “caramelos de oxitocina” e os liftings cosméticos são quase obrigatórios (“há poucos velhos não operados na Terra”); há uma beligerante plataforma espacial chamada Cosmos (metáfora da Coreia do Norte?) e um multimilionário populista que defende apenas alguns (Trump?); há Terroristas Instantâneos, ou EJI, que decapitam reféns, e adolescentes doutrinados pelo ódio, que têm um calão, aqui energicamente inventado; e há, ainda, um apagão tecnológico que faz desmoronar esta realidade.
O tiquetaque patente na angústia de Bruna, a quem só restam três anos da vida pré-programada, denuncia a intenção de alerta da autora. Mas a otimista Montero, ainda que contaminada por alguns evitáveis clichés (“Oli era tão sábia como Buda”, “Bruna acordou nos braços da velha amiga ressaca”…), oferece um mantra às personagens femininas, que dominam a história: “Sem amor, não vale a pena viver.”
