“Baixote e entroncado, a rondar os 40 anos, de barba negra, vestido de escuro, muito sério, apareci por lá a coxear no fim da fila que O Venturoso ia receber nesse dia. D. Manuel lembrava-se bem da minha cara e estou ainda a vê-lo a franzir a testa como se estivesse a pensar como era mesmo o nome deste maçador que já por duas vezes lhe solicitara favores.” Assim se autodescreve Fernão de Magalhães no livro que leva o seu famoso nome, Fernão de Magalhães – O Homem Que Se Transformou Em Planeta (INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda, 64 págs.).
Filho do nobre Rodrigo, desde que era “um rapazola de 14 anos”, a servir como pajem na corte de D. Leonor (esposa de D. João II), aí escutando essa solução inacreditável e demiúrgica que foi a de dois reinos quinhentistas dividirem o mundo das terras “descobertas e por descobrir” apenas entre si, sonhava em embarcar para terras distantes, e perseguir os sonhos de obter as especiarias, o petróleo da época, como era o caso do cravinho, apenas encontrado nas Ilhas Molucas. Como “nada há mais forte do que uma ambição velha”, por alturas dessa audiência já Fernão embarcara nas armadas ocidentais, travara combates na Índia, sonhara sem sucesso com fortuna.
A formidável história do navegador português que, rejeitado por D. Manuel I, se colocaria ao serviço dos monarcas espanhóis, assim fazendo a primeira viagem de circum-navegação do mundo, é aqui magnífica e profusamente relembrada por Luís Almeida Martins (escritor, jornalista, editor da VISÃO História), acompanhada pelas belas ilustrações de António Jorge Gonçalves. A narrativa é assumida por Fernão (sabendo que vive agora as “mil vidas” da internet e da posteridade dada pelo batismo de galáxias, sistemas de GPS ou de pinguins com o seu nome).
O registo é um truque dickensiano: ele faz uma visita noturna ao autor, “Vossa Escritoria”. Este ora incentiva o herói, ora descreve o estado de espírito (seu e do interlocutor), encarnando assim os humores do leitor. Ao relato, não faltam mea culpa, ironia, aproximação ao vocabulário atual, espírito crítico, vívidas descrições (do Paço, das ilhas, dos navios da frota…), notas enciclopédicas (sobre o que eram o escorbuto e as cartas de marear…). Uma circum-navegação também literária..
“Fernão de Magalhães – O Homem Que Se Transformou Em Planeta” tem um bónus: uma capa desdobrável com a ilustração da viagem mais famosa, que aconteceu entre 1519 e 1522.