Quando foi publicado, há exatamente um século, em 1919, este romance carregava uma boa dose de mistério. Era assinado pelo pseudónimo Emil Sinclair, nome do protagonista desta narrativa (como indicado no subtítulo: A História da Juventude de Emil Sinclair). “Relata a vida de uma pessoa viva, real e irrepetível e não a de alguém inventado, hipotético ou idealizado ou inexistente”, lia-se num breve prólogo. Só alguns anos depois, Hermann Hesse assumiu a autoria desse relato.
Mistério, também, porque este bom exemplo de bildungsroman (“romance de formação”, em que se assiste ao crescimento e às transformações da personagem principal) toca, decididamente, teses, dúvidas e reflexões que, na primeira metade do século passado (e ainda hoje), queriam dar resposta às grandes questões da Humanidade. As crenças da psicanálise de Freud e da psicologia analítica de Jung estão aqui bem presentes, mesmo de forma direta, em frases como: “Qualquer pessoa, para tornar-se ela própria, tem de acabar por destruir os esteios da sua meninice. Uma tal brecha torna a fechar, cicatriza e é esquecida; contudo, nas zonas mais profundas, permanece viva e não cessa de sangrar.”
O Demian do título é uma espécie de misterioso amigo e guia espiritual na viagem de autoconhecimento do jovem Sinclair. A relação entre as duas personagens permite ao escritor tocar todos os temas que o ocupam por essa época. O misticismo de variadas origens, caro a Hermann Hesse, percorre estas páginas e pressente-se o fascínio pelo pensamento oriental que dará origem, por exemplo, a Siddhartha, a sua obra mais popular. Também a proximidade da Primeira Guerra Mundial marca esta narrativa, que nos fala de uma Europa que, “tendo criado novas armas para as populações, por fim, tombara numa profunda e gritante desolação espiritual, pois apoderara-se de todo o mundo para, de seguida, perder a sua alma”. Não faltam pontes com o presente para dar força a esta obra centenária, que agarra, ainda, o leitor do século XXI.