Ascensão e queda de um anjo no livro “Princípio de Karenina” de Afonso Cruz
Lucilia Monteiro
Portugalidade granítica, ecos asiáticos e mundo globalizado entretecem-se nesta novela, versão terna do romance de Tolstoi... Assim é o novo romance de Afonso Cruz: Princípio de Karenina
Imagine uma enciclopédia do mundo. Depois, imagine-a a ser fechada numa caixa, agitada, misturadas as geografias, filosofias e teologias, ouvir-se “abracadabra!” e, tcharan, eis uma maravilha. Na literatura portuguesa contemporânea ninguém faz esse passe de mágica melhor do que Afonso Cruz.
Nesta novela de capítulos curtos como histórias de embalar, pontuados por fotografias suas (ilusões de movimento), ele costura Camilo Castelo Branco, Heródoto, a Guerra do Vietname, uma homenagem ao pai, guerras religiosas, temas contemporâneos como a globalização (metaforizada através da comida) ou os imigrantes (“Uma boa parte da Humanidade pode ser definida pela doença do meu pai, pelo medo”, conta; e mais lá para a frente fala-se de beijos que espalham 80 milhões de bactérias: “Somos povoados de estrangeiros”). Mas também apontamentos botânicos, um vocabulário rico (“turiferário”, “apocatástase”, “sensação háptica” – sabe o que significam?) e até os contos de fadas dos irmãos Grimm (a propósito do medo do mundo, fala-se numa “fera terrível lá fora”: “O meu objetivo, aos oito anos, era chegar aos subúrbios sem morrer de medo pelo caminho”). E há, ainda, a rima constante do tema dos anjos caídos que devem ser levantados…
Tudo é desfiado na longa carta de um pai a uma filha, que não o conhece, em que descreve a infância de menino coxo numa “casa de pedra” bem fechada pelo pai, que se comportava como se “o mundo que estava para lá da sua pele o agoniasse” e para quem o estrangeiro começava “no tapete da porta da rua” até à Cochinchina. A mãe, era uma estrangeira nesse lar. O amigo, Dois Metros, um estrangeiro no seu corpo. Casado, adormecido como a Anna Karenina de Tolstoi, também este medroso enfrentará o mundo através de uma paixão extraconjugal: uma vietnamita que lhe serve “uma espécie de planisfério à mesa”: “Quando olho para ela, vejo uma janela aberta.” O amor será trágico, o livro é agridoce. O júbilo de viver vence.
“Princípio de Karenina” teve origem numa viagem organizada pelo Centro Nacional de Cultura ao Vietname e ao Camboja e num texto escrito por Afonso Cruz para Pasta e Basta, espetáculo de Giacomo Scalisi sobre teatro e culinária