Se há uma imagem que a maioria das pessoas com idade para se lembrarem associa a Mstislav Rostropovich (1927-2007) é a da sua figura sentada a tocar Bach, junto ao Muro de Berlim, já aberto, em 1989. Uma celebração da liberdade e também da arte alemã, onde Bach é um expoente absoluto. Dois anos depois, o violoncelista voltaria a estar presente num momento histórico, mas aí enquanto o drama corria. Foi em agosto de 1991, durante o golpe de Estado que as fações mais conservadoras do regime soviético lançaram contra Gorbachev, e que, ao fracassar, levaria, paradoxamente, ao fim da URSS. Quando parecia bastante provável que tudo terminasse num banho de sangue, Rostropovich voou para Moscovo e foi juntar-se a Boris Iéltsin, o líder da resistência, em frente ao parlamento russo. Talvez a presença visível daquele artista universalmente célebre tenha contribuído para evitar a tragédia. O certo é que não foi a primeira vez que Rostropovich enfrentou a ditadura comunista no seu país.
Nos anos 60, numa altura em que ele e a mulher, a soprano Galina Vishnevskaya, eram há muito considerados glórias nacionais, acolheram em sua casa o escritor dissidente Alexander Soljenitsin. Viveria com eles quatro anos, até ser expulso do país, e os dois músicos não tardariam a segui-lo, até porque nessa altura as autoridades já mal os deixavam tocar em público. Instalaram-se nos EUA, e em 1978 Rostropovich foi oficialmente privado da nacionalidade russa, que só recuperaria em 1990. Não que isso lhe tenha arruinado a vida. Sendo um dos artistas de música erudita mais bem pagos do mundo, não lhe faltava trabalho, e ele sempre tinha sido extremamente ativo.
Como a presente caixa mostra, o tom quente e flexível de Rostropovich não serviu apenas as obras mais populares do repertório (Dvorak, Beethoven, Brahms, Schumann, Haydn) como também a música contemporânea, que solicitava aos compositores. A lista dos que escreveram obras para ele vai de Prokofiev e Shostakovich a Schnittke, Tishchenko, Dutilleux, Penderecki, Lutoslawski, Gubaidulina e muitos outros. Boa parte dos russos surgem nos 13 últimos CDs, genericamente intitulados The Russian Years. Um disco de estreias mundiais junta Weinberg e Knipper ao nosso Lopes-Graça, representado pelo seu belo Concerto de Câmara (1965), encomenda do violoncelista. De modo geral, mesmo nesses CDs o som é perfeitamente satisfatório, e há que dar os parabéns aos engenheiros, antigos e novos.
Os outros CDs contêm um número substancial de registos de referência, a começar pelas suites de Bach, que Rostropovich considerava o cume da literatura para o seu instrumento e que só quis fixar já depois dos seus 60 anos, em gravações que pagou e controlou totalmente para as poder destruir caso não ficasse satisfeito. Felizmente, ficou. A dignidade da apresentação (incluindo um álbum de 200 páginas) torna esta edição uma prenda ideal para comemorar um aniversário. Já agora, esta quinta-feira, 27, passam dez anos sobre a morte do violoncelista.
Mstislav Rostropovich, Cellist of the Century, The Complete Warner Recordings contém no seu interior 40 discos, três DVDs e um álbum de 200 páginas. Uma imersão total na vida e obra do músico nascido em Baku a 27 de março de 1927.
Veja aqui Mstislav Rostropovich a interpretar o Prelúdio da Suite para Violoncelo No.1 BWV 1007 de J. S. Bach