“Velhos ou novos, o único sinal que procuro sempre retirar dos meus livros (normalmente com pouco êxito) é o autocolante com o preço que os malvados livreiros colam nas contracapas. Estas diabólicas cicatrizes brancas saem com dificuldade e deixam chagas leprosas e vestígios de cola a que aderem o pó e a lanugem do tempo, fazendo-me desejar um inferno especial, pegajoso, ao qual condenar o inventor destes autocolantes.”
Esta frase enfática necessita de uma senha: é preciso um bibliófilo, um apaixonado por livros (ou, no mínimo, um desses seres que sofrem da compulsão imparável de quererem ter sempre mais e mais lombadas, ainda que empilhadas em qualquer canto da casa), para concordar, sem desdém nem sobranceria, com a virulenta irritação de Alberto Manguel. O autor argentino sonhou, na sua juventude, em ser bibliotecário – destino a que se esquivou, confessa, por preguiça e por uma vontade incontida de viajar. Hoje, vive finalmente essa vocação, após meio século a juntar volumes literários.
Os seus dias são passados na biblioteca pessoal, um acervo babeliano encerrado num antigo presbitério francês recuperado. Mas é à noite, reflete, que tudo aí se transforma: Manguel transforma-se num “fantasma” algo furtivo, o labirinto de lombadas de couro “rejubila numa alegre desordem do mundo”, e as histórias e vozes dentro dos livros comunicam entre si, reinventando encontros inimagináveis entre Virginia Wolf com Rudyard Kipling ou com poesia árabe.
Dos sistemas de organização bibliófila às citações de autores, dos livros queimados ao advento digital (que o autor admoesta, descrente do seu poder), a demanda de A Biblioteca à Noite não tem limites, e nós acompanhamo-la com prazer: Manguel é um belíssimo guia, insuflando o texto com citações e histórias díspares, contagiando-nos com esta obsessão. E assim provando que a literatura é uma constelação que escapa ao tempo e ao espaço, revela como ele recriou o paraíso segundo o seu antigo mentor, Borges: uma imensa biblioteca.
A Biblioteca à Noite (Tinta da China, 304 págs., €23,90) parte da própria biblioteca de Manguel, um celeiro reconstruído numa colina a sul do Loire, inspirada na biblioteca do Colégio Nacional de Buenos Aires, escola que o escritor frequentou