O género autobiográfico pode ser um território movediço: o que é narrado em página configura a dita verdade dos factos ou, antes, uma pose destinada a um particular revisionismo biográfico ou à constituição de uma subtil hagiografia? Muitas vezes, esta resposta não é de todo importante, prevalecendo o gesto literário. Não é o caso deste norueguês de 49 anos, pai de quatro filhos, inoculador de uma febre editorial que consumiu países. A sinceridade move, ou empurra, Karl Ove Knausgard, envolvendo o ímpeto narrativo (que abrange infância, juventude e vida adulta, um arco temporal organizado não cronologicamente), o vocabulário escolhido (uma linguagem “normal”, direta, “desinteressante”, sem floreados), a matéria-prima (longas páginas dedicadas, por vezes, a detalhes, a espuma dos dias). No grande esquema das coisas, os pequenos nadas valem no esforço para contar uma vida – ainda que o autor tenha dito, em entrevistas, ser-lhe estranho que uma obra escrita “sem ambição” se tenha tornado num paradigma de sucesso literário. Mas há um fascínio no tamanho da empreitada, na torrência da informação, na admissão da vergonha e do embaraço, na não exclusão dos momentos invisíveis (como a higiene, o trocar fraldas a bebés), dos incómodos e frustrações com a paternidade (tema do segundo volume Um Homem Apaixonado), do desencanto familiar, da desintegração da figura do pai (que viria a morrer num estupor alcoólico) e de todas as outras instituições à volta – incluindo professores, arte, políticas do país. Knausgard não se limita a ver-se ao espelho, entra nesta superfície até onde a sua memória o deixa. Por vezes, temos a sensação de que este movimento em frente – e para trás, e para baixo, e para o alto – é o que verdadeiramente o guia, sem chegar a delinear uma “história bem contada”, uma “arquitetura literária”. É o tal impulso de sinceridade, um resquício bergmaniano – o que é importante é contar, contar tudo, ter a coragem de contar. E é essa vertigem, aditiva para quem a empreendeu e para quem a lê, que nos faz agarrar estes livros até à última página.
A Ilha da Infância (Relógio D’Água, 424 págs., €23) é o terceiro de uma série originalmente publicada em seis volumes, entre 2009 e 2011: 3500 páginas biográficas sob um título que recorda, e ironiza, o tomo escrito por Hitler