Onde há 64 anos foi construído o aeroporto de Porto Santo, antigamente estavam plantadas vinhas. A uva não ficava na ilha – viajava diretamente para o Funchal, capital do arquipélago da Madeira, destinada ao tradicional vinho Madeira.
Na ilha, de origem vulcânica, a produção de vinho sempre ocupou parte das fazendas, pequenas parcelas de terra dos porto-santenses, numa espécie de passatempo para remexer a areia. Nos últimos tempos, o fruto valorizou tanto que, em setembro de 2022, as castas Caracol e Listrão chegaram aos quatro euros por quilo.
No Sítio das Cancelas, Manuel Escórcio, 70 anos, faz vinho há mais de quatro décadas. Das vinhas velhas centenárias, com as castas Canim e Jaqué em cerca de cinco mil metros quadrados, consegue extrair uma produção máxima de mil litros por ano, nem que seja só para bebericar como aperitivo com uns amendoins. “Era bom ter mais gente a fazer vinho, para manter a tradição”, afirma o autodidata.

Com metade da idade, o jovem viticultor Pedro Dias, bombeiro no aeroporto há mais de uma década, comprou a Quinta do Pilha Gatos, outros cinco mil metros quadrados com as castas Caracol, Moscatel e Listrão. O avô também ali fazia vinho, além de criar gado, e Pedro deu continuidade ao método tradicional, com tudo feito à mão e só com produtos biológicos.
Sem adega nem lagar, começou por vender a uva a uma das mais antigas empresas produtoras e exportadoras de vinho Madeira, para a transformarem em vinho licoroso e branco de mesa. Com um projeto de enoturismo pensado, Pedro Dias quer “preparar o futuro e preservar as tradições”.
Parece que as preces de Manuel Escórcio foram ouvidas. Aos dois pequenos produtores porto-santenses – exemplos da persistência necessária para não se perder uma ancestral forma de trabalhar a terra – juntou-se recentemente a Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões – nome a lembrar que os madeirenses chamam “profetas” aos porto-santenses e são por estes apelidados de “villões” –, um projeto a quatro mãos, de António Maçanita, enólogo, e Nuno Faria, sócio do restaurante 100 Maneiras, em Lisboa.
“Estamos a vinificar um sítio”
A 13 de março de 2020, Nuno Faria aterrou na ilha dourada, vindo da capital, a bordo do último avião que chegou a Porto Santo antes de ser decretada a pandemia. Madeirense de gema, com muitas férias grandes passadas em Porto Santo, logo “começou a sentir a terra”.

Entretanto, o desafio lançado a António Maçanita, para juntos plantarem vinha nas dunas, já deu os primeiros frutos. Chamem-no para descobrir lugares especiais, com terroirs e castas de eleição, desaparecidas ou esquecidas, e lá vai ele – como tão bem revitalizou o vinho da ilha do Pico, nos Açores.
“Somos um livro aberto”, garante o enólogo. Em três anos, Maçanita teve tempo para olhar para uma região de fio a pavio e ganhou confiança com a casta Listrão. Conheceu o senhor Cardina e, ao cheirar os seus vinhos, foi buscar os mesmos aromas e sensações que teve quando cheirou os vinhos dos senhores do Pico. “Existia uma certa ligação à forma de fazer vinhos antigamente”, descreve.
Um sabor e um cheiro podem fazer “sentir um lugar” e, para António Maçanita, “essa é a profundidade dos vinhos de Porto Santo”. “A sensação de que estou num sítio. Não é fugaz, não é efémero. Estamos a vinificar um sítio. Quero ter uma comunidade de enologia a renascer”, acrescenta.
E está a conseguir. A pequena revolução que a Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões se propôs fazer em Porto Santo, tão ambiciosa como a realizada no Pico, precisou de muitas mais mãos, principalmente das dos cerca de 15 viticultores com quem estão a trabalhar.
O segredo das areias quentes
Afinal, qual é o segredo do sucesso para, num território árido, com temperaturas elevadas e pouca chuva, a viticultura vingar? São várias as particularidades que tornam a ilha de Porto Santo tão especial para a produção de vinho, com a riqueza de uma casta autóctone, como a Caracol.
Dentro dos muros de crochet – semelhantes aos currais de basalto negro erguidos no Pico –, as videiras são tratadas com pinças, de forma artesanal. Os pequenos buracos nos muros, a separarem as pedras calcárias, permitem que o vento passe e areje a vinha no verão (a temperatura média anual é de 18,4 ºC e a temperatura máxima ronda os 27 ºC), protegendo-a dos fortes ventos de sal. Esta é uma técnica típica desta viticultura atlântica, com videiras rasteiras em areia fina e rica em minerais, que mantém a temperatura – a mesma utilizada na psamoterapia, terapia de areias quentes feita nos spas da ilha.

Os grãos finos resultam dos depósitos acumulados de restos de conchas e de animais marinhos, da fragmentação de corais e algas calcárias. Os 14 milhões de anos de existência de Porto Santo deram tempo suficiente para a rocha-mãe se transformar em solo com pH de 8,5.
Numa ilha em que a água potável é água do mar dessalinizada, quando chove no inverno, a areia absorve a água e o vinhedo nunca fica alagado. Em Porto Santo, aprendeu-se a regar com a gravidade.
Na ilha, a pluviosidade média anual oscila entre os 320 e os 380 milímetros, sendo que “300 milímetros é o limite para se produzir vinho, para uma vinha aguentar sem água”, sublinha António Maçanita. Foi o engenho do Homem que tornou possível plantar vinha num território em que o ponto mais alto alcança 516 metros. A baixa altitude das montanhas faz com que o efeito Foehn não ocorra – significa que, levado pelos ventos alísios, o ar sobe um lado da montanha e a mudança de altitude arrefece-o. Ao descer pelo outro lado do cume, dá-se uma nova mudança de altitude e, além de ter perdido a humidade, com o aumento da pressão atmosférica, a temperatura do ar fica superior à de quando subiu.
Colheitas premiadas
Nativa de Porto Santo, a casta Caracol é parente da Listrão (conhecida por Palomino Fino em Jerez, Listan Blanco nas Canárias e Malvasia Rei em Portugal continental). “A Caracol é tão próxima da Listrão que bem podia ser sua filha ou mesmo progenitora”, explica António Maçanita. Embora a casta mais nobre seja a Listrão – “tem mais fama, sabe-se mais sobre ela” –, o maior património da ilha é a Caracol, com dez a 12 hectares de um total de 15.

Em breve, a Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões terá a sua primeira vinha de exploração direta com 2 500 metros quadrados, só de Listrão, no novo Parque Urbano, inaugurado em setembro do ano passado. É o lugar das antigas grandes vinhas, na requalificada frente dunar, mesmo junto ao mar, no terreno onde, durante 40 anos, funcionou o parque de campismo. Mesmo com os locais a dizerem-lhes que é um projeto impossível e que “o melhor é não se meterem nisso”, António Maçanita e Nuno Faria vão arriscar.
Nos planos destes profetas e villões sempre esteve contemplada a criação de uma adega, objetivo alcançado numa antiga oficina de automóveis transformada, junto ao aeroporto.
Até 2022, quando saíram os primeiros vinhos certificados, totalmente produzidos, vinificados e engarrafados na ilha (na verdade, correspondeu à terceira vindima dos Profetas e Villões), as uvas eram levadas para o Funchal, na Madeira, porque os produtores não podiam transformar nem engarrafar sem licenciamento industrial.
Logo em 2020, a estreia da nova companhia de vinhos não podia ter sido mais auspiciosa, com os elogios de suprassumos internacionais da enologia. O Listrão dos Profetas e o Listrão dos Profetas Vinho da Corda receberam, respetivamente, 94 e 95 pontos em 100, atribuídos por Robert Parker, crítico de vinhos da publicação Wine Advocate. Depois, foi a vez de Jancis Robinson, Master of Wine, colunista residente da edição de fim de semana do Financial Times e uma das mais reputadas críticas de vinho do mundo, premiar os dois brancos: o Listrão dos Profetas obteve 17,5 pontos em 20 e o Listrão dos Profetas Vinho da Corda conquistou 19. Pontuações históricas de vinhos da casta Listrão, de Porto Santo, com as melhores notas de sempre para um vinho madeirense e a mais alta pontuação para um branco português.
Por cá, o mesmo Listrão dos Profetas também integrou o top 30 dos Melhores Vinhos da Revista de Vinhos. Resta-nos abrir uma garrafa e servir uma ilha inteira num copo.
BRANCOS ATLÂNTICOS: Cinco vinhos feitos e engarrados em Porto Santo

Caracol dos Profetas 2022
Da casta Caracol, as uvas foram vindimadas manualmente e vinificadas pela primeira vez na ilha de Porto Santo. Tem cor amarelo-pálida aberta, aroma intenso, fresco, com notas florais, e paladar com frescura e acidez. Requer pratos leves, como ceviches, carpaccios, ostras, amêijoas e peixe branco de grelha. Beber a 10 ºC. €24,95
Caracol dos Profetas Fazendas da Areia 2022
O nome refere-se às parcelas cujos solos são areias puras, de calcário, de onde vêm uvas. Apresenta cor amarelo–palha cristalina, aroma com notas de citrinos e casca de laranja com algum iodo e pólvora, paladar com boa frescura e persistência. Na mesa, acompanha produtos do mar de casca rija, como vieiras e amêijoas. Beber a 10 ºC. €59,95
Listrão dos Profetas 2022
De uvas da casta Listrão, de vinhas antigas com mais de 80 anos, produziram-se 2 270 garrafas numeradas. Cor amarelo–pálida, aroma salino, mineral, paladar cheio, texturado, persistente. Harmonização com produtos do mar de casca rija, como vieiras e amêijoas. Beber a 10 ºC. €59,95
Vinho da Corda dos Profetas 2022
O “vinho da corda” era uma das formas de preparar os licorosos antes da chegada da aguardentação, em meados do século XVII. Feito com as castas Listrão e Caracol, tem cor amarelo-dourada, quase cobre, aroma muito intenso, algures entre um vinho da Madeira e um Jerez, paladar encorpado e persistente. Ideal com pratos apurados, como guisado de polvo ou caldeirada. Beber a 14 ºC. €59,95
Crosta Calcária dos Profetas 2022
Crosta calcária é uma zona geológica no norte da ilha de Porto Santo, onde o solo mais compactado dá vinhos ainda mais minerais. De castas Listrão (83%) e Caracol (17%), produziram-se apenas 633 garrafas. Tem cor amarelo-pálida, aroma salino, mineral, paladar persistente. Vai bem com produtos do mar de casca rija, como vieiras e amêijoas. Beber a 10 ºC. €150