A vírgula é aquele sinal ortográfico ligeiramente curvilíneo, elegante, que nos obriga, sem mágoa, a um compasso de espera, a fazermos uma pausa, para respirarmos, antes de sabermos o que se segue. Encontramo-la aqui, à entrada no novo restaurante de Marlene Vieira. E percebemo-lo bem.
Não gostamos especialmente do verbo esperar, mas adivinhamos que valeu cada dia em que ansiámos por este fine dinning. E agora temos a certeza ao ver o ar feliz de Marlene, na cozinha aberta, no centro da enorme sala em tons de castanho, marcada pela madeira de nogueira e pela iluminação baixa, focada nos pratos.
Preferimos ficar ao balcão, com vista privilegiada para o bailado constante dos quatro elementos da equipa que fazem desfilar os 12 pratos do menu mais completo, assumidamente a piscar o olho à Estrela Michelin. Aqui não se encontram toalhas de mesa, mas há guardanapos de linho bege de dimensão arrojada, com a assinatura da chefe. E loiça linda, que se transforma de acordo com o que nos entregam. Se a isto juntarmos os talheres variados da Cutipol e os copos de uma leveza surpreendente, temos a equação perfeita para nos entregarmos aos prazeres da mesa, sem vergonhas. Venha de lá esse espumante seco Luiz Costa, que estamos prontos para as próximas horas de bem comer.
A passagem de modelos gastronómica começa com quatro snacks, irresistivelmente instagramáveis. Nem sabemos bem por onde começar os elogios, pois a filhós de foie gras (aquela palavra mágica…) recheada de maçã reineta assada e gel de vinho Madeira é qualquer coisa. O tremoço em forma de malmequer nem tem tradução em palavras. E não podemos cair em exageros quando relembramos a tarte de percebes ou o gaspacho feito com as cabeças da gamba violeta que vem embrulhada em rábano. Na verdade, preferimos permanecer naquele sossego que se seguiu, para que as papilas gustativas não se esquecessem do mergulho no mar que acabáramos de dar.
Só saímos desse torpor, quando Mário Cruz, o discreto braço-direito (e esquerdo) de Marlene, nos revela que o pão e a broa de milho branco que aí vêm são feitos aqui e ainda estão mornos. Adoramos este momento de pausa que nos prepara, entre uma manteiga das Flores e um azeite biológico de Trás-os-Montes, para o resto da degustação.
Do prato seguinte só sobressai uma intrigante espuma verde e, nem mesmo depois de a chefe nos falar vagamente num “pinhoto”, percebemos onde estamos metidos. Há bacalhau, pinhões a substituírem o arroz e muita salsa. Até ao final da refeição, que ainda está longe, este sabor e textura não hão de abandonar-nos.
Também devoramos o linguado, “um peixe da época”, e rapamos até ao limite da vergonha o creme feito com espargos brancos, bem como as suas lâminas de espessura perfeita. Temos ainda direito a caviar russo, que nestas alturas não existem boicotes bélicos que nos detenham. E há a lembrar as lascas de trufa bianchetto, meus deuses, que contaminam a atmosfera com o seu aroma primaveril.
O que escrever do pudim de caldeirada e açafrão com pedaços de enguia crocante? No mínimo, que se deixa comer enquanto Gabriela Marques, a sommelier, nos serve o primeiro tinto da noite, um vinhas velhas de Bragança, apresentado como Alto do Joa. O borrego, dissemo-lo na altura, e voltamos a deixar aqui por escrito, podia saltar deste desfile marítimo-vegetal em que estávamos embrenhados. “Nesta altura do ano ainda faz falta”, assevera Marlene, adiantando que no verão a carne sairá de cena.
Terminamos com duas sobremesas peculiares e pouco doces, lamentamos pelos leitores mais gulosos. Primeiro, temos um tira-gostos de ananás dos Açores, com pinhão e rúcula (não nos enganámos, ou já se esqueceram de que adjetivámos este momento com um “peculiar”?). Depois, segue-se um mix de texturas com base nas sazonais e frescas nêsperas. Temos sempre a sensação de que os petits fours chegam tarde demais – apetece prová-los todos, mas isso implicaria mais horas de ginásio no dia seguinte e houve que dedilhar acerca desta felicidade que sentimos, depois da (longa) espera de dois anos, escondidos nas máscaras e distanciados socialmente.
Marlene, > Av. Infante D. Henrique, Doca Jardim do Tabaco, Terminal de Cruzeiros de Lisboa > T. 91 262 6761 > qua-sáb 19h30-23h > menu 7 momentos €95, 12 momentos €130
4 perguntas a Marlene Vieira: “Quisemos abrir em harmonia”
A assumida corrida de Marlene Vieira à Estrela Michelin já começou
1. Faço-lhe a mesma pergunta que fez o taxista que me trouxe até aqui – o que se come neste restaurante?
Tentámos chegar a um menu que incluísse o que está hoje numa mesa portuguesa, quando comemoramos. Podem ser produtos nacionais com técnicas internacionais ou vice-versa. Baseamo-nos numa carta sazonal, com alimentos da época, sem desperdícios, e de olho na sustentabilidade. Sustentabilidade, não…
2. Porque foge dessa palavra, acha que está gasta?
Está banalizada. Mas temos de manter a sustentabilidade financeira que sempre nos caracterizou, pois não temos investidores. Somos uma empresa PME Líder, o que implica, entre outras exigências, termos saldo positivo, não haver registo de queixas de trabalhadores e existir paridade na equipa.
3. Essa paridade teve de ser forçada, numa profissão que é maioritariamente masculina?
Não, aconteceu, porque eu só recruto talento – até há bem pouco tempo, encarregava-me de todas as entrevistas. Só no caso da nossa sommelier é que fiz questão que fosse uma mulher, para fazer parelha comigo. E tem corrido tudo muito bem com a Gabriela Marques, que há um mês veio do Cura para se juntar a nós.
4. Porque demorou dois anos para inaugurar o Marlene, quando tinha tudo pronto desde 2020?
Quisemos abrir em harmonia, sem ansiedade. Entretanto, aproveitámos o tempo para apurar o menu e saber onde podemos marcar a diferença. Estamos muito felizes por estar aqui e temos vários planos para este restaurante, desde logo conseguir uma Estrela Michelin.