Na empena do antigo hospital de Cascais, no centro da vila, há uma mulher de rosto sentido e triste pela história que a envolve. A história é a lenda da Boca do Inferno que inspirou o argentino Bosoletti, convidado a participar na segunda edição do Muraliza. O Festival de Arte Mural “nasceu da vontade de devolver a Cascais um estatuto esquecido, e mesmo desconhecido por muitos, de que foi aqui, mais concretamente em Carcavelos, que, no final da década de 1980, se começou a fazer a história do graffiti em Portugal”, explica-nos Lara Seixo Rodrigues que produziu o festival e nos conduz pelo centro da vila.
O percurso com início no Largo Camões é feito a pé e, para quem vem em jeito de passeio, há setas pintadas a vermelho que indicam o caminho. À medida que dobramos esquinas por entre ruas estreitas, surgem peixes coloridos de grandes dimensões desenhados a spray sobre uma grande mancha azul e, mais adiante, o Museu Condes de Castro Guimarães envolto numa paisagem surrealista pintada a pincel fino. Os momentos de pausa servem para Laura ir explicando o que é isto do graffiti e como se chegou à agora designada arte urbana. Mas também as técnicas desta forma de expressão artística de quem escolhe a rua para se mostrar.
Na edição do ano passado, foram seis os artistas convidados, num grupo que juntou os históricos do graffiti Nomen, Exas e Youth, a Mário Belém, Add Fuel e Arraiano. Todos de Cascais. É que isto tem as suas regras e os estatutos na rua são para respeitar. Já este ano, o número cresceu para nove e o festival abriu-se a outros talentos nacionais e estrangeiros, como o italiano Millo a quem coube uma empena ao cimo da Avenida de Sintra – mais afastada, portanto, do centro histórico. A linha preta e alguns apontamentos de cor, eis o menino feito cavaleiro de trincha em punho que anuncia que há murais pintados por aqui. Em comum têm a história, lendas e património locais. Como os rostos dos pescadores de pele calejada pelo tempo que inspiraram Samina e Draw. Ou os azulejos com que Add Fuel pintou caixas de eletricidade e as paredes daquela que “já foi uma casa portuguesa, de certeza”, como se lê à porta. É a nossa cultura que se vai desvanecendo e a mensagem serve para nos pôr a pensar. Isso ou a sorrir, como quando passamos por uma das paredes de Mário Belém e quase ouvimos a voz da velhinha de carrapito a tricotar o mar: “Não quero aqui macacadas!!”.
Não é a pé, mas de minibus que se faz a Underdogs Public Art Tour, uma visita de cerca de três horas que a plataforma Underdogs, dirigida pela dupla Alexandre Farto (Vhils) e Pauline Foessel, organiza desde março. Isto se for em grupo, porque para duas pessoas há um sidecar que combina mesmo bem com o passeio. Afinal, esta é uma Lisboa transformada em museu, que conta com artistas nacionais e internacionais, convidados pela Underdogs para uma exposição na galeria, que inclui sempre, além de impressões de edição limitada, a pintura de um mural de grande escala. Foi o caso de Sainer. Num prédio de 12 andares da Avenida Afonso Costa está, desde abril passado, a figura de uma senhora que caminha de boquilha na mão. “Sobre quem é e o que faz, o artista deixa à interpretação de cada um”, diz Marina Rei, 22 anos, responsável pelas visitas, revelando alguns dos elementos comuns nos personagens que o polaco desenha. Como o coelho, representado no chapéu que parece voar, o robot estampado num saco moderno ou o boneco de neve aqui transformado em anel que usa na mão. Desenhada a olho, sem projeção, tem duas vezes e meia o tamanho de uma pessoa e é preciso afastarmo-nos para termos a perceção da sua verdadeira dimensão.
Estamos nas Olaias, a terceira paragem de uma rota que começa no Hall of Fame das Amoreiras e segue para o Projeto Crono, nas fachadas dos prédios abandonados da Avenida Fontes Pereira de Melo, e que trouxe a Lisboa, em 2010, os brasileiros Gémeos, o italiano Blue e do catalão Sam3. Mostra-se o lado mais underground do graffiti e da contestação política, a par daquele que é considerado um momento de viragem nesta história recente da arte urbana, depois do jornal britânico The Guardian ter incluído o Projeto Crono na lista das 10 melhores obras de street art do mundo.
Voltamos a Sainer e às Olaias, para dizer que é em direção à zona oriental da cidade que seguimos. “O objetivo da Underdogs é acrescentar valor a outras zonas da cidade que não são centrais e mostrá-las”, explica Marina. E chegamos a Marvila, onde está a única pintura abstrata do roteiro. É do alemão Clemens Behr e divide as atenções com um Pedro Álvares Cabral de traços indígenas, do brasileiro Nunca, aqui tornado mendigo, a acrílico e spray. Marina chama a atenção para as moedas no ar. “Não sabemos quem as dá ou se é Cabral quem as atira, mas o Nunca prometeu completar a história numa outra cidade”, revela.
O percurso tem 12 paragens, e tirando a galeria e a loja da Underdogs no Mercado da Ribeira onde termina, tudo o resto são paredes e muros de artistas como Okuda, Olivier Kosta-Théfaine, do coletivo Cyrcle, os gémeos How e Nosm ou os brasileiros Bicicleta Sem Freio. Depois há Vhils, claro, que tem gravado os seus rostos anónimos pela cidade, como em Alcântara, por altura da sua exposição Dissecação no Museu da Electricidade, ou no Jardim do Tabaco, numa colaboração com Pixelpancho. No pequeno edifício cedido pela Câmara Municipal de Lisboa – como acontece, aliás, com algumas das paredes da Underdogs, que também aceita doações de particulares -, surgem os personagens robotizados (ou serão robôs humanizados?) do italiano, aqui de face esculpida em várias camadas por Vhils. “É um marinheiro que sopra um barco para o mar”, descreve Marina. Gosta de criar a sua narrativa, mas diz também que “cada um interpreta como quiser”. “Houve um miúdo que me perguntou se o marinheiro tinha a bochecha vermelha e estava corado”, conta, recordando a visita que fez a um grupo de crianças. “E isso fez-me olhar de forma diferente para esta parede.” _
Pode a arte ser o motor da inclusão social? A Câmara Municipal de Loures acredita que sim e à segunda edição do festival O Bairro i O Mundo, feito em colaboração da Associação Teatro IBISCO, decidiu convidar alguns artistas a pintar as empenas dos prédios da Quinta do Mocho, em Sacavém. A iniciativa marcou “o arranque da requalificação de um bairro que quer mostrar uma imagem diferente daquela por que é conhecido”, refere Maria Eugénia Coelho, vereadora da Coesão Social e Habitação. “Passa por envolver os moradores, para que eles assumam também um papel interventivo e ativo”, acrescenta.
Na urbanização municipal não existem tantas nacionalidades quantas as que compõem o concelho de Loures, mas a grande maioria são africanos, com raízes nas ex-colónias portuguesas. O bloco quadrado pintado a castanho pelo francês MTO, como se fosse uma encomenda que aqui caiu desamparada, resume bem a história de quem aqui foi relocado pela construção dos acessos viários à Expo 98. Tantos anos depois, só este mês começou a circular a carreira da Rodoviária com destino a Lisboa. Desde que o projeto teve início, em outubro passado, foram muitos os artistas que subiram e desceram na única grua que a câmara dispõe, contando-se por estes dias 32 paredes pintadas. As assinaturas são de nomes como Vhils, Odeith, Nomen, Tamara Alves, Mar, Ram, Smile, ou o brasileiro Vespa, entre tantos outros, “que quiseram ficar a conhecer melhor a realidade do bairro, chamando até as pessoas a participar”, conta Cristina Melo, 53 anos. A técnica da câmara, que acompanhou todos os trabalhos, conduz também as visitas guiadas a esta Galeria de Arte Pública, como é designada, que acontecem no último sábado de cada mês. Fala-nos das obras, das técnicas, das dinâmicas e vivências destas ruas, das mensagens que os artistas tentam passar e daquilo que os inspirou – como as capulanas de Moçambique que secam nos estendais, reproduzidas por OzeArv (nome artístico de José Carvalho) na fachada do Lote 69. Quem aqui vive, tem o seu nome à porta e agradece que lhe tivessem pintado a entrada do prédio com padrões coloridos. A simbolizar as migrações, está a garça de Bordalo II, ou Artur Bordalo, feita de para-choques de carros e caixotes de reciclagem em fim de vida.
Em março passado, o Festival o Bairro i O Mundo ficou entre os cinco finalistas que concorreram ao prémio Diversity Advantage Challenge, promovido pelo Conselho da Europa e que distingue projetos de inclusão social de minorias. Não ganhou, mas há outras conquistas que já tiveram um impacto significativo na vida das gentes da Quinta do Mocho.
Ruas pintadas a Norte
À boleia das primeiras visitas guiadas pela arte urbana do Porto, que a galeria de artes emergentes Circus começará a fazer em agosto, andámos a ver as paredes da cidade
No Esquizossáuro gigante, pintado por Binau, sobressai uma espécie de criatura mitológica, com olhos enormes e garras longas. O mural na “gruta” da Circus Network, na Rua do Rosário, no Porto, será o ponto de partida para um roteiro de visitas guiadas pela arte urbana da cidade, que André Carvalho e Ana Muska, os dois responsáveis pela galeria de artes emergentes, pretendem organizar já a partir de agosto. “As pessoas batem-nos à porta a perguntar onde encontrar arte urbana. E, por isso, lembrámo-nos de fazer um roteiro”, conta André, 26 anos, que também organiza o festival de ilustração e arte urbana Push Porto, que aconteceu no ano passado.
Com Ana Muska em Gouveia, a acompanhar a intervenção de artistas de street art no mercado municipal, é André Carvalho quem nos guia pela cidade, em busca das intervenções artísticas nas paredes. A partida, já se disse, é sempre feita no “mundo pré-histórico” de Binau, que ali esteve em residência artística durante um mês. “Este mural está em constante mutação”, explica André, que deixou a meio o curso de marketing para abraçar esta agência de criativos portugueses a funcionar também como espaço de cowork.
À direita do Esquizossáuro, está uma obra pintada por Fedor, com as mesmas cores e ligação temática à de Binau, e as girafas do coletivo portuense Chei Krew. Há 20 espalhadas pela cidade, o que levou a Circus a lançar um passatempo, desafiando quem encontrar as duas dezenas de “girafas à solta” a enviar fotos para o Instagram, durante este verão, com a hashtag #cheikrew#circusnetwork#girafasolta.
A visita guiada segue para a Rua Miguel Bombarda, onde não passa despercebido o Coração Filigrana de Hazul Luzah e Costah, uma das mais antigas pinturas da cidade, cujas cores os artistas vão alterando com frequência. Nesta, aponta André, nenhuma brigada antigraffiti ousa mexer. Hazul tornou-se num dos artistas de street art mais respeitados da cidade e lançou, há poucos meses, um mapa com 56 das suas obras, para que cada pessoa as possa ir descobrindo sozinha.
Do anonimato ao legal
Aqui e ali vão surgindo outros desenhos nas paredes. André Carvalho continua a não entender o critério usado pelas brigadas antigraffiti, que apagam obras sem saberem o que ali está. “Quem somos nós para decidir se uma peça é bonita ou feia?”, questiona. A solução, argumenta, passaria necessariamente por existirem “paredes limpas onde os artistas pudessem pintar livremente, sem estarem a olhar atrás do ombro”. “Só desta forma evoluem, experimentando técnicas novas”, ressalva. “Há espaço para tudo numa cidade moderna. Até para a liberdade”, prossegue, ao mesmo tempo que rumamos ao “primeiro mural legal do Porto”, situado no cruzamento da Rua Diogo Brandão com a Miguel Bombarda. A obra de 130 metros quadrados, assinada por Fedor, Mesk e Mots, evoca as personagens de Dom Quixote de la Mancha numa espécie de ironia a fazer lembrar a “luta contra os moinhos de vento” do passado. Por falta de orçamento, conta André, os artistas tiveram que “poupar nas cores” e ficaram-se pelos tons de castanho e cinza. “O Dom Quixote, de Cervantes, é também uma história de amizade, tal como a camaradagem entre os graffiters”, sublinha.
No cruzamento que dá acesso à Rua de Cedofeita, os menos atentos não encontrarão, à primeira, o mural pintado por Mesk, Pedro Podre e Brous (dupla Virus e Alma), quase escondido numa varanda de um primeiro andar inacessível de um prédio abandonado. Na Rua de Cedofeita, quando guiar os visitantes nos passeios ao domingo, o coletivo Circus há de aproveitar o facto de as lojas estarem fechadas para mostrar os trabalhos feitos, em 2013, nos gradeamentos de ferro, fruto do projeto Imagin’OPorto, do coletivo Ru+A, que incluiu, entre outros, pinturas de Oker, Mesk, Lara Luís, Hazul e Third.
Subimos a Travessa de Cedofeita onde os graffitis vão aparecendo e desaparecendo nas empenas das casas. A frase anónima Bebe, ri, vive, sê feliz é das que tem sobrevivido. Sabe-se lá porquê, diz André. No nosso País “ainda se pensa que os graffitis e as tags transmitem uma sensação de insegurança. Insegurança é não haver luz nas ruas…”, denuncia.
Seguimos pela Rua das Oliveiras, em direção à Praça Coronel Pacheco, e passamos pela parede feita de papel que Costah ali colou há poucos dias. Arrisca-se a ter, com certeza, um futuro bem menos duradouro que o mural pintado ali, no ano passado, pelos alemães Look e Vidam, do coletivo The Weird, numa das paredes do edifício PINC da UPTEC, durante a primeira edição do festival Push Porto, no ano passado. “Era a parede de um dormitório feminino, sem janelas abertas para fora, para que as meninas não vissem quem passava”, revela o nosso guia. Uma arquitetura que acabou por dar jeito aos artistas. Na mesma altura, e “com as latas de tinta que sobraram”, o berlinense Base 23 acabaria por fazer uma intervenção mesmo ao lado na descida da Rua do Mirante. Enquanto descemos a calçada, André vai lamentando o facto de “em Portugal, em vez de se abraçar a singularidade, haver a tendência de padronizar o que se faz lá fora, abafando-se artistas com potencial”. E dá exemplos. “Os Cabidela Ninja têm uma linguagem tão própria e distinta que são referenciados em revistas estrangeiras. Aqui ninguém lhes liga.”
O ‘graff’ é história
Seguimos para a Rua de Camões, onde o mural Ribeira Negra não deixa ninguém indiferente. Pintado por BreakOne, Frederico Draw, Fedor, Oker e Alma, foi inspirado no painel de azulejos de Júlio Resende. “É a representação do Porto: a mão envelhecida pelo trabalho, as gaivotas mutantes que comem pombas, os meninos a saltar da ponte, a cidade com história”, conta o responsável da Circus. Entusiasmado com o resultado final, o proprietário da parede, dono da Churrascaria Paraíso, até mandou colocar uns holofotes para iluminar a obra durante a noite.
“A parede ficou melhor assim”, constata Rogério Carvalho.
O quiosque da Praça do Marquês, onde Pedro Podre pintou um velho (numa alusão às dezenas de velhotes que ali passam as tardes a jogar às cartas) é o próximo destino do roteiro. Antes de descermos pela rua da Alegria, convém parar no cruzamento com a D. João IV e olhar o edifício devoluto do Instituto Politécnico do Porto, cuja fachada foi pintada por um grupo de 100 estudantes do curso de Artes Visuais da Escola Superior de Educação, inspirada na obra do brasileiro Daniel Caballero. Mais abaixo, na esquina da Rua da Alegria com a Rua do Moreira, salta à vista o mural colorido pintado por Mesk e Third, “com referências ao início do graffiti de Nova Iorque e aos desenhos animados da nossa geração como as Tartaruga Ninja ou o Kishimoto”, explica André.
Este roteiro preparado pela Circus passa obrigatoriamente pela Fábrica Social – Fundação José Rodrigues. Uma autêntica galeria a céu aberto que tem sido usada por muitos artistas mais ou menos anónimos. Por ali ainda é visível o resultado do Visual Street Performance que, em 2010, juntou artistas de todo o mundo nas traseiras da antiga fábrica de chapéus Real Fábrica Social. Entre outros (como Youth One, Oker, Caos…), terá que se pelo trabalho de Alexandre Farto aka Vhils: um rosto feminino esculpido na pedra. “É o nosso único Vhils no Porto”, nota André Carvalho.
Quem és, Porto?
O maior painel de azulejos da cidade, inaugurado há poucas semanas no largo de S. Bento, é também de passagem obrigatória neste roteiro. No âmbito do projeto Locomotiva, com direção artística de Miguel Januário (+-maismenos+-), a fachada de 135 metros quadrados do bar Gare, na Rua da Madeira cobriu-se com três mil azulejos. À pergunta “Quem és, Porto?”, milhares de anónimos responderam com expressões portuenses como “cimbalino”, “chunga”, “bibó Puorto carago” ou “berço de granito”. Miguel Januário não perdeu a oportunidade para deixar um testemunho mais interventivo, como já nos tem habituado, com a frase “Antiga, mui gourmet, sem plano social e turística cidade do Porto”. “Este painel é um verdadeiro sentimento de comunidade. Só o Januário para fazer uma coisa destas”, realça André Carvalho, apontando ainda para outra fachada pintada com stencil, no cimo da rua, feita pela dupla italiana Sten + Lex. “Foi a primeira abordagem da Câmara a um artista internacional”, diz, com uma ponta de esperança em relação ao futuro da street art na cidade. Conseguir “legalizar paredes” é o objetivo da galeria para 2016.
“O graffiti está para ficar”, assegura.
A fechar este roteiro – que poderá ser mutante e abrange outras obras como o mural pintado por Hazul e Mr.Dheo no parque de estacionamento da Trindade e o mural coletivo da Rua da Restauração – a Circus sugere uma passagem pelo trabalho geométrico em azulejo feito no ano passado pelo coletivo brasileiro Muda, junto à Praça da Ribeira. Sem parar de rir, André Carvalho recorda o dia em que os artistas chegaram com uma mala de viagem carregada com 40 kg de azulejos. “Não sabiam se os iam encontrar cá em Portugal!”