A estrela Michelin não assustou nenhum dos seis jornalistas convidados a participar no desafio de “cozinhar para” os chefs Antoine Westermann e Vincent Farges, do restaurante do hotel Fortaleza do Guincho, em Cascais. Às nove da manhã, com o pequeno-almoço tomado, vestimos as jalecas personalizadas, para mergulhar, literalmente, na cozinha do Guincho. Um convívio saudável, que normalmente não seria possível em França, por exemplo, onde existe uma certa rivalidade entre os jornalistas do métier.
Chegados à cozinha, onde permanecemos as seis horas seguintes, uma mesa comprida esperava-nos. Em cima, ingredientes de todas as cores, texturas, sabores, funções. Legumes, muitos legumes. À direita, as carnes lombo de porco preto, preterido pelas três duplas, mas rapidamente aproveitado pelo chef Vincent que se desdobrou para ajudar todas as equipas. Bacon fumado, paia, trufas. Do lado esquerdo, os salmonetes, as vieiras, os mexilhões e o lingueirão.
A VISÃO7 teve por companheiro de jaleca, Duarte Calvão, jornalista responsável pelo projeto gastronómico da Associação de Turismo de Lisboa, tendo agora em mãos a organização do Peixe Em Lisboa (7-17 Abr). Da primeira escolha de mexilhões e lingueirões passámos à vontade de fazer uma sopa com um toque asiático.
Acrescentámos o sabor da terra com as ervilhas e favinhas da primavera. Para a bandeja foram chalotas, erva príncipe (também conhecida por citronela ou em inglês lemongrass), funcho, coentros e flores comestíveis (os quais no final, viríamos a abdicar), limão, algas (apanhadas junto às rochas do mar batido do Guincho), água do mar. Para dar o toque do fumado, escolhemos o bacon, mas o chef Vincent foi buscar a paia (uma espécie de pancetta italiana), numa alusão ao surf ‘n’ turf (combinação de marisco e carne).
Evoluímos para um prato chamado “sopa do mar em caldo da terra”. Apetecível? Sem dúvida.
PASSO A PASSO
Primeiro foi preciso fazer o consommé de algas: para a panela foi azeite, cebola, alho francês, aipo, funcho com rama, vinho branco e água do mar.
O som do estrugido “é música” para os ouvidos de Vincent. As temperaturas altas dos fogões contrastavam com o dia frio, mas solarengo, que lá em cima se sentia. Os legumes não podiam esturricar, bastava ganharem uma cor. Ao mesmo tempo, abriram-se os bivalves. Aos mexilhões e lingueirões juntaram-se os percebes (que não estavam no mostruário). Um verdadeiro trunfo.
Panelas distintas para cada um dos bivalves com água a ferver, chalota, alho, coentros, louro e vinho branco. Assim que a água levantava fervura era retirá-los do lume. A preparação da brunoise de legumes (cortar em pedaços pequenos do mesmo tamanho) foi muito bem executada pelo nosso parceiro: segurava na faca e posicionava os dedos da maneira correta e em segurança.
Aos mexilhões foi preciso retirar a casca e do seu interior extrair uma parte negra que é um nervo; ao lingueirão cortámos da tripa em diante; nos percebes apenas deixámos a parte dura para ajudar a pegar. As favinhas e as ervilhas não foram esquecidas. Depois de retiradas das vagens foi necessário bringir água a ferver com muito sal, uma espécie de pré-cozedura para fi carem al dente. Em tachos separados ferveu-se água com muito sal, assim que se deitaram as leguminosas e levantava novamente fervura, bastava contar até dez e tirá-las do lume passando para um recipiente com água gelada. É o choque térmico que mantém a clorofi la, responsável pela cor verde. Seguidamente foram descascadas, uma a uma. Confesso: tivemos ajuda de membros da equipa… minúcia e delicadeza precisava-se.
PÃO E VINHO
Altura de escolher o pão, em cima do qual iria uma fatia de paia frita, à laia de bruschetta catalã (fatia de pão tostada e aromatizada de alho). Escolhemos o de cerveja. Vincent sempre muito requisitado consegue acudir todas as equipas, dúvidas com as espinhas do salmonete ou com as delicadas vieiras, ingredientes principais do prato de cada uma das outras equipas. Graças aos nossos mariscos, há quem tente adivinhar a receita, e arrisque no palpite de uma açorda. Segue-se a escolha do vinho para acompanhar cada prato, com a sabedoria de Inácio Loureiro, sommelier do Ano 2010, premiado pela revista Wine Essência do Vinho e Revista dos Vinhos. Da nossa receita salientámos três elementos essenciais: mar, terra e picante. Optámos por um vinho da ilha da Madeira, região emergente nos brancos.
O Primeira Paixão, projeto de dois enólogos premiados, Francisco Albuquerque e Rui Reguinga, usa apenas a casta verdelho, cuja influência marítima lhe confere originalidade, sendo muito diferente do verdelho do continente, é mais frutado e mais tropical. Voltámos à cozinha, mas de copo em riste.
Ao caldo inicial foram acrescentados todos os sucos dos mariscos e da sua cozedura, erva príncipe, algas, raspa de limão, e nesta altura abandonámos a ideia dos coentros. Nascendo a vontade de enriquecer a sopa com umas gotas de picante caseiro. A fase de empratamento contou apenas com a nossa supervisão.
A PROVA FINAL
Seguiu-se um riquíssimo menu degustação improvisado na cozinha da Fortaleza do Guincho, sob o olhar atento de Antoine Westermann. Com sinceridade o chef “avaliou” as receitas, cuja imaginação e diversidade o surpreenderam. Com a sopa de beterraba com requeijão, sementes de sésamo, coentros e chips de beterraba, que teve a mão de Petra Sauer, diretora do hotel, e Patricia Grunler, mulher de Antoine, bebemos Ruinart rosé.
Chegaram as lâminas de vieiras com limão caviar (sabor parecido com toranja) e lima kaffir, numa marinada de maçã verde, gengibre, azeite, brunoise de funcho e aipo e raspa de limão. A fazer lembrar ceviche. Ao prato “gritaram-lhe” o nome “It’s raw”, numa referência ao programa televisivo Hell’s Kitchen com o chef Gordon Ramsay a insultar os concorrentes de cada vez que as vieiras estão cruas.
É a vez da “sopa do mar em caldo da terra”. As expressões faciais de deleite foram legendadas à base de palavras como “elegante”, “gourmand”, muito saboroso e crocante. As Festas de Lisboa vieram com os salmonetes (na vez das sardinhas) acompanhados de espargos, tomate confitado, pasta de fígado, alcaparras e azeitonas e alcachofras.
O desprezado lombo de porco teve por companhia finas lâminas de trufas, cogumelos e ervilhas. O pão de queijo branco da sobremesa fica no segredo dos deuses e o gelado de lima e manjericão encerrou o desfile de criatividade em forma de comida.