“Vamos lá?” Na consola, o cirurgião controla a lente e os instrumentos. Com uma visão tridimensional do campo cirúrgico, avalia e age quase como se estivesse dentro do corpo. Os movimentos das suas mãos traduzidos em impulsos são transmitidos às pinças dos braços robóticos, que executam as ordens do médico através de pequenos orifícios introduzidos na barriga do doente. Kris Maes, coordenador do Centro de Cirurgia Robótica e Minimamente Invasiva do Hospital da Luz, em Lisboa, e pioneiro da cirurgia robótica mundial, prepara-se para fazer uma prostatectomia (remoção da próstata), através de cirurgia robótica, num paciente de 68 anos com um tumor de 11 milímetros.
“Como se trata de um tumor de alto risco, e apesar de os exames terem mostrado que não metastizou, temos de tirar a próstata e os gânglios linfáticos”, explica. Uma intervenção muito frequente (até ao final da semana, ainda vai fazer mais sete destas), mas sempre única, delicada e complexa porque “temos de preservar nervos fundamentais”.
Ao longo de mais de três horas, tudo decorre sem sobressaltos. Os braços robóticos cumprem os comandos dados pelo cirurgião na consola, assistido por uma equipa de mais dois cirurgiões, um anestesista e três enfermeiros. Primeiro, é preciso abrir caminho até ao tumor, só depois cortar e colar. Nos ecrãs, a visibilidade e a nitidez dos órgãos são impressionantes. Há que afastar, dissecar, drenar, garrotear, cortar, coser, limpar, eliminar… Com a precisão e a flexibilidade dos movimentos das pinças, tudo parece fácil, natural, senão mesmo intuitivo. “Quase nem precisamos de falar”, nota Kris Maes que, em 2010, veio da Bélgica para estrear a cirurgia robótica em Portugal.
Hoje, a urologia representa 75% da cirurgia robótica deste centro do Hospital da Luz, com o cancro da próstata à frente. Mas também há intervenções regulares de cirurgia geral, ginecologia e operações torácicas. No total, já são feitas anualmente cerca de 400 cirurgias robóticas neste hospital – no ano passado realizaram-se 397, uma média de 33 por mês. “Isto é o futuro da cirurgia? Não, isto é o presente! É assim que se opera em todo o mundo”, garante, Kris Maes.

Uma opinião partilhada por todos os que conhecem de perto as “enormes vantagens” desta tecnologia. Hugo Pinto Marques, diretor de Cirurgia Geral e da Unidade Hepatobiliopancreática do Hospital Curry Cabral, fala da robótica como “o futuro da ciência”, convicto de que se trata da “maior evolução que a cirurgia teve nas duas últimas décadas”
E Margarida Martinho, responsável pela Unidade de Endoscopia do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Centro Hospitalar São João, garante que “o futuro passará pela cirurgia robótica” e que “nada vai voltar atrás”.
Isto é o futuro da cirurgia? Não, é o presente! É assim que se opera em todo o mundo
Kris Maes, Coordenador do Centro de Cirurgia Robótica e Minimamente Invasiva, do Hospital da Luz
Também Javier Gallego-Poveda, coordenador de Cirurgia Torácica do Hospital Lusíadas Lisboa, está certo de que “no futuro, a maioria das especialidades que realizam cirurgias videoassistidas adotarão a robótica”, enquanto António Oliveira, diretor do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar Universitário de Santo António, diz que “a robotização na cirurgia veio para ficar”.
Dentro de um filme
Mas quais as razões de tanto entusiasmo e de tantas certezas? As vantagens da cirurgia robótica são, efetivamente, muitas: é mais precisa e segura, menos invasiva e dolorosa. Tudo graças à imagem (uma visão tridimensional aumentada dez vezes permite uma perceção de profundidade e detalhes muito mais precisos do que as visualizações bidimensionais convencionais), aos movimentos (com uma amplitude de 540 graus, que excede a capacidade da mão humana) e a uma gama de instrumentos cirúrgicos especializados que podem ser trocados facilmente e controlados com grande destreza. Tudo isto junto oferece-nos imensas possibilidades, da resolução de problemas complexos à redução de riscos.

“O robot permite-nos fazer movimentos muito mais amplos, elimina o tremor e a precisão é enorme”, resume o cirurgião Hugo Pinto Marques, destacando ainda a “capacidade de ampliação da imagem e o uso de contrastes visuais que nos permitem ver coisas que o olho humano não consegue ver sozinho”. A isto, prossegue, junta-se “a possibilidade de haver uma agressão mínima”, exemplificando: “Numa cirurgia tradicional, podemos ter de fazer uma abertura grande no abdómen (de 20 centímetros ou mais) e isso dificulta muito a recuperação; enquanto aqui, a cirurgia é toda feita por cinco orifícios e, por isso, a recuperação é muitíssimo mais rápida. E não se trata apenas da recuperação física do doente, mas da capacidade de todo o organismo recuperar, porque não é submetido a uma agressão cirúrgica tão grande.”
Javier Gallego, também diretor da UMICS (Unit for Minimally Invasive Cardiothoracic Surgery), destaca igualmente esta capacidade de recuperação. “Os benefícios para os pacientes submetidos à cirurgia robótica incluem menor dor pós-operatória e menor tempo de internamento, com um retorno rápido às atividades diárias”, diz, para adiantar que mesmo “nos procedimentos que requerem sutura interna, como na cirurgia valvular mitral ou na cirurgia dos brônquios, a tecnologia robótica permite uma precisão de movimentos mais elevada e uma maior facilidade na realização das suturas”.
Fomos pioneiros ao realizar a primeira cirurgia de reparação valvular mitral em Portugal, há cerca de dois anos
Javier Gallego-Poveda, Coordenador de Cirurgia Torácica do Hospital Lusíadas, Lisboa
O “rigor técnico e a personalização dos gestos cirúrgicos” que permitem obter “melhores resultados clínicos e menor taxa de complicações para os pacientes” são igualmente referidos por António Oliveira, diretor do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar Universitário de Santo António, que considera ainda a robotização uma forma de atrair profissionais. “O investimento na evolução tecnológica dos serviços clínicos e hospitais é, sem dúvida, uma forma de cativar profissionais de saúde a manterem-se no Serviço Nacional de Saúde.”
“Não é só comprar o avião”
Independentemente dos avanços e das vantagens, há que ter em atenção que a robótica, só por si, não faz milagres. Kris Maes, perito e instrutor em formação robótica, não se cansa de sublinhar que “há uma curva de aprendizagem muito grande e difícil” e que “é muito importante ter profissionais bem treinados”. Porque, justifica, “a máquina não faz tudo sozinha”, tem de ser devidamente comandada
“Não é só comprar o avião, tem de se ensinar o piloto a comandar o avião.” Ou, recorrendo a outra imagem, “eu tenho de ter experiência suficiente para conhecer o carro e, assim, poder dar atenção ao trânsito, isto é, poder concentrar-me naquilo que é importante”, diz o coordenador do Robotic Fellowship Program no Hospital da Luz, Lisboa.
“Temos de investir muito em formação e exigir mais”, insiste o urologista. Afinal, “a cirurgia robótica só tem vantagens se alguém a fizer bem” e “tudo depende de quem a faz e de como a faz”. Infelizmente, aponta, “às vezes, subestima-se a aprendizagem”, lembrando, por exemplo, que “para fazer bem uma prostatectomia difícil são precisos muitos anos de trabalho”. Refira-se, aliás, que, no caso da cirurgia robótica, a prática pode mesmo ser ganha sem riscos – o Da Vinci integra um simulador que permite ao médico operar (e treinar) num corpo virtual.
Maes, que dirige aquele que é o único centro da Península Ibérica com graduação em Cirurgia Robótica e formação certificada pela Associação Europeia de Urologia, já ensinou muitos profissionais de todo o mundo. Naquele dia, no bloco operatório do Hospital da Luz, são dois urologistas brasileiros que lhe seguem, atentos nos ecrãs, as indicações e o curso das mãos. “Viemos aprender técnicas inovadoras, outras rotinas… E tem sido muito útil e positivo”, diz Vítor Pereira, no Hospital Roberto Santos, na Bahia, enaltecendo as “grandes qualidades” do mestre.
Já a ginecologista Margarida Martinho começa por sublinhar a capacidade de imersão. “É quase como um filme 3D… e nós sentimo-nos dentro do filme.” Uma visão “muito mais precisa e ampliada, que faz com que a avaliação seja amplamente melhorada”, nota. Por outro lado, prossegue, “o facto de manipularmos os comandos robóticos, permite-nos simular e até ampliar os movimentos que fazemos com a mão e o punho”. E como temos “movimentos que saem o mais natural possível, uma liberdade de ação e uma amplitude maiores, a manipulação dos tecidos torna-se mais precisa e mais segura”.
A propósito, realça também a importância dos “sistemas de segurança”. E exemplifica: “Se o robot deteta movimentos imprevistos e que possam ser arriscados para o doente, bloqueia o movimento das pinças. E se, por qualquer motivo, o cirurgião deixa de ter atenção ao campo cirúrgico e retira a cabeça da consola, o sistema bloqueia.” Além disso, prossegue, temos ainda o conforto do médico. “Estamos sentados e ergonomicamente instalados, podemos parar e descansar, enquanto cirurgias muito prolongadas e complexas podem ser procedimentos muito cansativos.” E isto é bom para todos porque “o doente beneficia sempre de um médico mais capaz, mais atento e a operar com maior conforto”.
Acresce ainda que esta técnica permite o acesso a zonas difíceis. “A laparoscopia já foi um avanço em relação à cirurgia aberta, mas aqui há um avanço ainda maior”, nota a vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Ginecologia, sublinhando que “territórios de muito difícil acesso tornam-se mais facilmente acessíveis”. A par disto, a robótica pode ajudar a resolver casos “com um elevado grau de complexidade, por exemplo, histerectomias em que o útero é muito volumoso”.

Da ficção para a realidade
O mesmo acontece na urologia. “Tenho doentes que foram recusados em cinco hospitais por terem um problema impossível de resolver por via convencional”, conta Kris Maes, contrariando assim a ideia por vezes difundida de que a cirurgia robótica só trata “casos fáceis”. Porque, concorda, “aqui somos capazes de chegar a sítios que seriam pouco acessíveis com as nossas mãos”. Por outro lado, acrescenta, a robótica pode ter vantagens na preservação das funções orgânicas, facto particularmente importante, por exemplo, numa remoção da próstata, em que o corte acidental de um nervo pode originar problemas de incontinência e impotência sexual.
Apesar de pouco conhecida para grande parte da população, há muito que a cirurgia robótica deixou de ser ficção. A ideia de criar uma máquina cirúrgica capaz de executar tarefas normalmente realizadas por mãos humanas surgiu há mais de 60 anos nos Estados Unidos da América, na altura pensada para permitir o tratamento de soldados feridos no campo de batalha. No entanto, o projeto não foi adiante devido a limitações técnicas e dilemas éticos, e o conceito só reapareceria 30 anos depois.

Em 1999, a Intuitive Surgical, fundada na Califórnia, introduziu no mercado o primeiro e único sistema robótico cirúrgico (apelidado Da Vinci, em homenagem ao cientista italiano que já em 1400 idealizara um engenho automático). Um ano depois, tornou-se o primeiro sistema certificado pelo regulador americano para cirurgia geral, torácica, cardíaca, vascular, urológica, ginecológica e otorrinolaringológica.
Atualmente, contabilizam-se mais de 14 milhões de intervenções feitas em todo o mundo com este robot (o mais avançado e utilizado), que já vai na sua quarta versão. Segundo dados da Excelência Robótica, que comercializa o Da Vinci na Península Ibérica, só no ano passado realizaram-se mais de 2,2 milhões de cirurgias, números que refletem um crescimento fulgurante. E Portugal tem vindo a acompanhar a onda.
Em 2023, ainda de acordo com aquela empresa, foram realizadas por cá mais de duas mil cirurgias, das quais 54% em urologia, 29% em cirurgia geral, 11% em ginecologia e 6% em cirurgia torácica, indicadores que refletem um aumento de 25% em relação a 2022.
“Eles sabem o que fazem!”
Maria José Guerreiro, 66 anos, foi referenciada para o Hospital Curry Cabral para uma cirurgia oncológica complicada ao pâncreas. Quando soube que ia ser operada por um robot ficou um pouco apreensiva, mas confiou
A descoberta, há cerca de dois meses, de um tumor maligno no pâncreas obrigou à realização de uma cirurgia oncológica curativa. “Foi sujeita a uma pancreatectomia corpo-caudal com esplenectomia, ou seja, retirámos o corpo e a cauda do pâncreas”, explicou-nos o cirurgião Emanuel Vigia. Uma intervenção delicada. “Mexer no pâncreas é sempre uma cirurgia complexa porque é um órgão escondido, e para lá chegarmos é preciso tirar alguns órgãos da frente.”
Felizmente, Maria José teve a sorte de ser operada por um robot: 48 horas depois da pancreatectomia, conversou connosco na sala de estar do hospital. “Sinto-me muito bem”, diz, com um largo sorriso. Sem dores, animada e, sobretudo, muito grata pelos cuidados “excecionais” de médicos e enfermeiros.
Confessa que quando soube que ia ser operada por um robot, ficou “um pouco apreensiva”, mas depressa sossegou. “Fui à internet pesquisar, percebi que era uma coisa boa, e fiquei muito calma”, conta. Do que leu e ouviu, concluiu que o robot era capaz de chegar “onde a mão humana não chega”. E confiou em pleno. “Eles sabem o que fazem!”, pensou.
Tranquila – “não estava nervosa nem nada assustada” – mas curiosa, a primeira coisa que fez quando entrou no bloco operatório foi procurar o robot. “E lá estava ele, todo branquinho”, recorda. Disseram-lhe que a recuperação ia ser muito boa, mas nunca se imaginou “tão bem” passado tão pouco tempo. “Não tenho dores, já me levanto sozinha, só tenho uns furinhos na barriga… E em breve vou poder fazer a minha vida normal”, diz, reconhecendo a “sorte”, ou mesmo o privilégio, de ter sido contemplada com uma cirurgia robótica.
Pablo Diaz, diretor-geral da Excelência Robótica, diz que “embora Portugal esteja numa fase de adoção da tecnologia mais atrasada do que se verifica em Espanha, regista uma dinâmica muito semelhante à que se verificou, anteriormente, no país vizinho”, com os primeiros sistemas robóticos Da Vinci a serem inicialmente instalados nos sistemas de saúde privados e só mais recentemente a chegarem ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). “Atualmente, revela, muitos hospitais estão em processo de concurso para integração de sistemas robóticos, o que significa que a utilização de cirurgia robótica está a arrancar rapidamente no País.”
Uma aposta confirmada pelo próprio diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, ao anunciar, em dezembro passado, a compra de seis novos robots cirúrgicos, o que fará aumentar de dez para 13 o número total destes equipamentos no serviço público. Esta “aquisição inovadora”, pode ler-se em comunicado, vai permitir a Portugal “dar um salto tecnológico nesta dimensão”.
O caminho começou em 2010, quando Kris Maes foi convidado a deixar o Hospital de Sint-Blasius, na Bélgica, para estrear o primeiro robot cirúrgico em Portugal, no Hospital da Luz, e formar médicos. “Na altura, ainda ninguém acreditava em cirurgia robótica”, recorda o renomeado urologista, confessando que “levou muito tempo a convencer o mundo cirúrgico” de todo o planeta para as potencialidades da robótica.

Depois do Hospital da Luz, foi a vez de a Fundação Champalimaud adquirir um Da Vinci, em 2015, a que se seguiram a CUF Infante Santo (hoje Tejo) e o Hospital da Luz Arrábida, em 2016. Em 2019, a plataforma robótica chegou ao SNS graças a uma doação da Fundação Aga Khan ao Hospital Curry Cabral, em 2021 ao Hospital Lusíadas Lisboa e, no ano passado, ao Hospital de São João e à CUF Porto.
Ainda em 2023, o Curry Cabral recebeu um segundo robot, constituindo-se assim um Centro de Cirurgia Robótica da ULS São José (onde, só em 2023, já se realizaram cerca de 500 cirurgias). Além do Da Vinci, outros modelos têm chegado aos hospitais portugueses, como são os casos do Hugo, desenvolvido pela Medtronic, e do Rosa, da Zimmer Biomet, instalados no Hospital de Santo António, no Porto.
Remoção e reconstrução
Mesmo não sendo compatível com todas as especialidades nem podendo resolver tudo (há operações que vão continuar a ser feitas pela cirurgia convencional), a verdade é que a cirurgia robótica tem vindo a expandir-se em Portugal. Da cirurgia geral à torácica, passando pela urologia, a ginecologia, a obesidade ou a ortopedia, são muitas as áreas a beneficiar desta tecnologia avançada. Nas mais variadas situações. Vejamos apenas alguns exemplos.
No pioneiro Centro de Cirurgia Robótica e Minimamente Invasiva do Hospital da Luz, é usada sobretudo em urologia para remover cancros da próstata (70% da cirurgia robótica oncológica), mas também do rim e da bexiga, além da reconstrução da bexiga ou da hipertrofia benigna da próstata. Mas há mais. “Obesidade, cancro do reto, cirurgia hepática e cardíaca, ginecologia oncológica…”, enumera Kris Maes.
O robot permite-nos fazer movimentos muito mais amplos, elimina o tremor e a precisão é enorme
Hugo Pinto Marques, Diretor de Cirurgia Geral e da Unidade Hepatobiliopancreática do Hospital Curry Cabral
Já no Curry Cabral, Hugo Pinto Marques, diretor da Cirurgia Geral e da Unidade Hepatobiliopancreática, estabeleceu inicialmente como áreas “prioritárias para o desenvolvimento da robótica” as cirurgias colorretal, da obesidade (sobretudo o bypass gástrico) e a hepática. A par disto, e à medida que o programa evoluiu, introduziram-se outras especialidades como a torácica, a ginecológica e a do pâncreas.
Referência nacional e internacional na cirurgia hepática, o Curry Cabral acabou por ser “pioneiro em certas intervenções ao fígado com robot, como a cirurgia dos tumores das vias biliares e a reconstrução de veias no fígado, e neste momento somos o centro da Europa que faz mais cirurgias de robótica”, revela o médico, adiantando que só no ano passado “foram operados, por robot, 100 doentes ao fígado”. Um recorde saboreado no dia 5 de fevereiro com mais um feito nesta especialidade: o primeiro transplante hepático da Europa (e o segundo no mundo) por cirurgia robótica.
Quase ao mesmo tempo, o Curry Cabral era ainda palco de outra estreia: a realização da primeira cirurgia robótica pediátrica em Portugal. Dirigida por Sofia Ferreira Lima, responsável pelo departamento de Cirurgia Pediátrica do Hospital de D. Estefânia, a intervenção (uma pieloplastia desmembrada) consistiu em eliminar uma obstrução que impedia a saída de urina do rim numa jovem de 17 anos, que “pela circunstância de estar a tirar o curso de bailarina, apresentava todas as vantagens em ser operada com recurso a robótica”.
No Hospital de São João, no Porto, que só estreou o seu programa robótico no início do ano passado, também já se fazem intervenções de urologia, ginecologia, colorretal, hepatobiliar e esófago-gástrica.
Margarida Marinho, responsável pela Unidade de Endoscopia do Serviço de Ginecologia daquele hospital, conta que “a ginecologia fez a sua primeira cirurgia robótica em março e, desde então, temos vindo a crescer em número”, com uma média de uma a duas cirurgias robóticas por semana de patologia ginecológica benigna e oncológica, do cancro à endometriose, passando pelo prolapso vaginal.
Também no Porto, mas desta vez do Hospital de Santo António, são os robots Hugo e Rosa a revolucionar os blocos operatórios. O primeiro serve a urologia, a ginecologia e a cirurgia geral em doenças como o cancro de próstata, rim ou colorretal, obesidade e hérnias da parede abdominal; o segundo dedica-se à prótese total do joelho (a intervenção mais regular), mas também a cirurgias ortopédicas da anca e da coluna vertebral.
“Em 2023 (praticamente nos últimos três meses) foram realizadas 30 próteses totais de joelho com apoio de robot, estando prevista para 2024 a realização de cerca de duas centenas, e esperando-se um incremento sustentado nos anos seguintes, substituindo progressivamente as cerca de cinco centenas realizadas anualmente pelo método tradicional”, diz António Oliveira, diretor do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar Universitário de Santo António.
A cirurgia cardiotorácica é outra especialidade a beneficiar deste avanço. Javier Gallego conta que foram “pioneiros ao realizar a primeira cirurgia de reparação valvular mitral em Portugal, há cerca de dois anos” e, desde então, os casos multiplicaram-se, do bypass coronário às patologias congénitas, passando pelo cancro do pulmão ou os defeitos do septo interauricular.
No âmbito da cirurgia pulmonar, prossegue, “destaca-se a grande inovação na técnica Uniportal RATS, que consiste na utilização de uma única incisão de três centímetros para inserção dos braços robóticos, em contraponto às quatro ou cinco incisões que são realizadas nas técnicas convencionais”. Técnicas “inovadoras e menos invasivas” que lhe valeram recentemente dois prémios internacionais em cirurgia cardiotorácica e cardiovascular.
Inteligência Artificial para breve
Rendidos às inúmeras vantagens da robótica nos blocos operatórios, os cirurgiões anteveem novos desenvolvimentos e potencialidades.
É o caso da cirurgia à distância, uma realidade que parece cada vez mais próxima – recentemente, um minúsculo robot criado para fazer cirurgias em microgravidade, conseguiu concluir com sucesso a sua primeira demonstração na Estação Espacial Internacional.
O investimento na evolução tecnológica é, sem dúvida, uma forma de cativar profissionais de saúde a manterem-se no SNS
António Oliveira, Diretor do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar Universitário de Santo António
O SpaceMIRA (sigla em inglês de Assistente Robótico In Vivo Miniaturizado) realizou várias operações em tecidos simulados no laboratório orbital enquanto era controlado por cirurgiões a aproximadamente 400 quilómetros abaixo, em Lincoln, no Nebraska. Uma conquista valiosa para expandir as opções cirúrgicas na Terra, bem como em áreas rurais ou campos de batalha. Refira-se que um dos grandes desafios ao tentar controlar um robot no Espaço a partir da Terra era a chamada latência (atraso de tempo entre o envio do comando e a sua receção pelo robot), que desta vez foi apenas de 0,85 segundos, margem considerada muito aceitável pelos especialistas.

A par disto, a indústria, de mãos dadas com a Ciência, tem vindo a trabalhar no desenvolvimento de novos equipamentos. No último congresso da Sociedade internacional de Cirurgiões Robóticos (SRS), realizado no ano passado, na Austrália, foram apresentados cerca de 50 robots, a maior parte deles cirúrgicos, prova de que “o futuro da medicina passa pela robótica”, garante Kris Maes. E não exclusivamente cirúrgica. “Há robots para oftalmologia, para a próstata, para o pulmão, para dirigir colonoscopias, para tirar cálculos renais, até está a ser desenvolvida uma ressonância magnética que define as lesões e faz biópsias e que pode ser usada no consultório”, revela o urologista, representante europeu no encontro. “A robótica é o grande avanço dos últimos anos e vai continuar a evoluir”, garante, convicto.
Uma evolução que contará inevitavelmente com o contributo da Inteligência Artificial (IA). E que, garante, trará ao cirurgião “uma grande ajuda”. Por exemplo, “o robot pode interpretar imagens e enviar-nos alertas, avisar de que não podemos cortar determinado nervo”. Tudo isto, obviamente, “com muito controlo” porque “não podemos dar autoridade indefinida à IA”, defende o pioneiro da urologia robótica.
Também Hugo Pinto Marques prevê a introdução da IA – que, reconhece, terá de ser “mais regulada” – e admite que o robot “vai provavelmente tornar-se autónomo em alguns tipos de intervenções estandardizadas”, ainda que o médico vá ter sempre “o papel do controlo de qualidade”.
Quanto ao resto, permanece a incógnita. Apesar de estarem a aparecer outros robots “francamente promissores” e de a IA parecer incontornável, “é difícil prever o que o futuro nos reserva”. Uma coisa, essa, parece certa. A cirurgia robótica veio para ficar… e está imparável. “Talvez não haja ainda evidência científica dos benefícios nalgumas áreas, mas quem tem experiência em robótica e quem percebe a qualidade com que as cirurgias se fazem, percebe que isto é o futuro.”
Dois dias depois desta conversa, num dos blocos operatórios do Curry Cabral, a remoção de um adenoma de seis centímetros no fígado por cirurgia robótica, uma intervenção aparentemente simples, acaba por se prolongar. Um fígado gordo e volumoso e um tumor localizado num “sítio complicado” obrigam a outros procedimentos e manobras de prevenção porque “o fígado é um órgão com uma rede vascular complexa e temos de evitar complicações no pós-operatório”, explica Pinto Marques, enquanto dirige os comandos na consola.
Apesar dos imprevistos, não há sustos nem hesitações, com as pinças mecânicas a cumprirem as ordens do cirurgião. “Vamos lá pôr o fígado no sítio!” Ao fim de mais de três horas, está tudo a postos para finalizar. Parte do fígado e a vesícula são colocados num saco para serem extraídos por uma pequena incisão no baixo-ventre.
Um pouco acima, só os orifícios dos braços robóticos deixarão uma marca ténue na barriga da paciente. Que, muito em breve, poderá ir para casa. Sem dores, grandes costuras ou riscos de complicações.
“A robotização é imparável”
Pablo Díez, diretor-geral da Excelência Robótica, empresa responsável pelo Da Vinci em Portugal, antevê um futuro promissor para a cirurgia robótica
Como é que a robótica pode beneficiar o rendimento do médico?
A cirurgia robótica Da Vinci pode ser muito eficiente, uma vez que aumenta a autonomia do cirurgião, permitindo-lhe controlar mais instrumentos, a câmara e um braço robótico adicional. Juntamente com as tecnologias avançadas à disposição do cirurgião, permite-lhe aceder a espaços mais pequenos e realizar cirurgias mais complexas que são impossíveis de realizar com outros tipos de técnicas.
Que avanços se esperam?
A robotização das salas de operações é imparável. Prevê-se que o mercado quintuplique nos próximos anos, liderado pelas empresas com capacidade de inovar constantemente e de criar valor para os doentes, profissionais médicos e sistemas de saúde. Gradualmente, assistiremos ao aparecimento de modelos de robots adaptados a várias patologias. A cirurgia com o sistema robótico Da Vinci irá evoluir para se tornar a técnica de eleição para muitas mais patologias.
O que está a ser investigado?
As investigações são realizadas pelo fabricante, Intuitive Surgical, que atualmente está a investir em ferramentas de Inteligência Artificial (IA) que ajudem o cirurgião na tomada de decisões, bem como no âmbito da cirurgia guiada, no qual, através de imagens, modelos, marcadores e outros elementos, poderão realizar-se cirurgias de forma mais rápida, precisa e segura.
O que podemos esperar com a aplicação da IA?
Avizinham-se progressos imparáveis na digitalização dos dados e nos sistemas de Big Data, bem como na aplicação da IA ao diagnóstico e à telemedicina. A IA trará diferentes ajudas ao cirurgião para conseguir cirurgias mais rápidas, mas também mais seguras, sistemas de navegação que identificam estruturas ou analisam dados em tempo real e que podem sobrepor modelos anatómicos à visão da consola. Por outro lado, outras tecnologias de diagnóstico precoce facilitarão tratamentos menos invasivos e mais económicos para os doentes. Estes avanços contribuirão para tornar mais eficiente o recurso mais escasso do sistema de saúde português durante a próxima década: os profissionais de saúde.
Robot e médico vão sempre complementar-se?
O robot é uma ferramenta que necessita sempre de um cirurgião experiente e capacitado. A robótica irá progredir ao longo dos anos e serão implementadas grandes melhorias na robótica, mas, na medicina, o cirurgião acabará sempre por tomar as decisões e a robótica fornecerá ajudas que lhe concederão uma melhor forma de tomar essas decisões.
Reportagem publicada na VISÃO Saúde nº 34, de fevereiro/março 2024