O desenvolvimento do cérebro é um processo contínuo, que se inicia logo após a conceção e continua até à idade adulta. Tudo começa na terceira semana de gestação, com o intitulado cérebro fetal a desenvolver-se com a “formação do tubo neural e que dará origem a todo o sistema nervoso central [encéfalo e medula espinal]”, explica Sónia Figueiroa, neuropediatra do Centro da Criança e do Adolescente do Hospital CUF Porto.
Primeiro, desenvolvem-se as conexões e capacidades neurais mais simples, dando lugar depois a circuitos e funções mais complexas. “As vivências e experiências precoces impactam a arquitetura cerebral, que é fundamental para o comportamento, a aprendizagem e o desempenho”, refere Andreia Leitão, pediatra do neurodesenvolvimento. O cérebro é formado por biliões de neurónios, que estabelecem conexões em diferentes áreas cerebrais, constituindo circuitos, sublinha a também diretora clínica do PIN Porto.
Durante a gravidez, acontece a formação da base de um cérebro funcional. “No primeiro trimestre, o feto adquire reflexos e a capacidade de reagir ao seu ambiente”, explica Renata Ferreira Domingos, neuropsicóloga no Hospital CUF Sintra e na Clínica CUF São Domingos de Rana.
No segundo trimestre, forma-se o mapa de ligações neuronais do cérebro, e, no final, o feto já é capaz de realizar movimentos específicos, como chuchar ou engolir.
“No terceiro trimestre, o cérebro separa-se em dois hemisférios – o esquerdo e o direito – e os movimentos do feto tornam-se mais intensos e rápidos. No nono mês de gestação, o cérebro já tem o mesmo número de neurónios do que o de um adulto, mas é significativamente menor”, acrescenta.
E depois do nascimento? A função cerebral continua em claro desenvolvimento, muito motivada pelos estímulos sensoriais. Nos primeiros anos de vida e até aos 6 anos, “o cérebro cresce a uma velocidade alucinante”, explica a neuropsicóloga. É por isso que se costuma dizer que “o cérebro da criança é como uma esponja, absorvendo tudo o que se passa à sua volta”.
Os primeiros anos de vida são essenciais para o modo como o cérebro irá funcionar. “Pelo menos um milhão de conexões neurais (sinapses) são efetuadas a cada segundo no primeiro ano de vida, número muito mais significativo do que em qualquer outra fase”, refere Sónia Figueiroa.
E como se organizam estas conexões e com que consequências? “As mesmas permitem ao bebé adquirir etapas do desenvolvimento motor (como o controlo cefálico, o sentar, o gatinhar ou o andar), comunicar e adquirir linguagem verbal e desenvolver emoções”, acrescenta a neuropediatra.
Mais tarde, com processos cognitivos mais complexos, outras funções são desenvolvidas, como a modulação da atenção, a orientação visual e espacial, a capacidade de ler, de escrever e de fazer cálculos.
Sobreviver ou ser genial
Todas as experiências a que a criança é exposta ao longo da vida, sejam positivas ou negativas, podem traduzir-se em novas conexões, que permitem aprendizagens importantes.
Os eventos traumáticos, sobretudo durante a gravidez e nos primeiros quatro anos de vida, são suscetíveis de afetar o desenvolvimento do cérebro e ter um impacto significativo no bem-estar emocional, mental e físico da criança, que pode perdurar até à idade adulta.
Quem o afirma é Renata Ferreira Domingos. E justifica: “Um cérebro exposto ao stresse e ao trauma alocará mais recursos ao sistema límbico, responsável pelas funções de sobrevivência (pulsação, pressão arterial, respiração, etc.) e menos ao córtex pré-frontal, região onde se desenvolvem as capacidades cognitivas superiores (resolução de problemas, adaptação, planeamento, etc.).”
Sabe-se que a exposição prolongada da criança ao trauma e a maus-tratos pode alterar a estrutura e o funcionamento cerebral, estando muito associada “a uma diminuição do volume do hipocampo [parte do cérebro envolvida na aprendizagem e na memória] e a níveis elevados de adrenalina e de cortisol”.
Segundo a neuropsicóloga, isto pode gerar dificuldades cognitivas e desregulação emocional, perturbações do sono, baixa autoestima, dificultar a criação de memórias e a interação social, diminuir a capacidade de atenção e foco e agravar o risco de dificuldades de aprendizagem e distúrbios mentais e comportamentais.
Dizendo as coisas de forma muito básica, quem cresceu a aprender que tem de estar sempre alerta e em constante stresse, para conseguir sobreviver, não tem espaço para outro tipo de pensamento, para desenvolver a criatividade ou a generosidade.
Sónia Figueiroa alerta para situações que têm um impacto negativo no desenvolvimento precoce do cérebro e no sucesso do indivíduo a longo termo, como “a pobreza, a privação nutricional, a violência familiar, os traumas e a exposição a tóxicos na fase pré e pós-natal”.
Por outro lado, as crianças que experienciam interações positivas “em idades mais precoces têm maior probabilidade de sucesso na escola e na vida”, refere Sónia Figueiroa.
São inimputáveis?
Uma questão que também tem vindo a ser discutida por especialistas é o efeito da exposição do cérebro aos ecrãs em idades mais precoces, nomeadamente “os efeitos da exposição à tecnologia na capacidade de atenção, abstração, imaginação e aprendizagem”, sublinha.
A interação entre os genes e o ambiente molda/desenha o cérebro em maturação, acrescenta Andreia Leitão. “Os genes proporcionam a base para a formação dos circuitos cerebrais. E a repetição do uso dos circuitos reforça-os. Um ingrediente major para a formação dos circuitos cerebrais é a interação e os momentos de reciprocidade entre a criança e os pais”, defende.
Os efeitos adversos numa fase precoce podem impactar “o estabelecimento de conexões neuronais e alterar a arquitetura cerebral, condicionando alterações estruturais e funcionais”.
É possível questionar se os adolescentes que cometem crimes podem ser considerados inimputáveis. Existe uma idade mínima para se imputar a responsabilidade criminal? “Se espreitarmos a neurobiologia, o desafio é enorme. A maturação das diferentes regiões cerebrais não é uniforme nem simultânea ao longo do tempo, não é uniforme entre indivíduos e pode variar de ritmo, de acordo com algumas fases no mesmo indivíduo”, sublinha Andreia Leitão.
A idade mínima de responsabilidade criminal varia entre os países, segundo fatores sociais e culturais. “No Brasil, na Costa Rica e no Equador, está determinado que a idade de responsabilidade criminal deve ser a partir dos 12 anos. A Argentina determina a partir dos 16.”
Quando as experiências são de natureza traumática, “as conexões mais utilizadas são aquelas de resposta ao trauma, o que reduz a formação de outras ligações necessárias para um comportamento adaptativo”, afiança Renata Ferreira Domingos.
O desenvolvimento do cérebro por idades
Com o contributo das especialistas Andreia Leitão, Renata Ferreira Domingos e Sónia Figueiroa, damos a conhecer as fases mais importantes, desde a conceção até à idade adulta
Nascimento
O cérebro tem cerca de 25% do tamanho do do adulto, mas duplica no primeiro ano de vida. Um ser humano nasce com cerca de 100 mil milhões de neurónios e com uma média de 2 500 conexões neuronais. Nesta fase, o bebé tem essencialmente reflexos que lhe permitem sobreviver – por exemplo, os reflexos do susto, de agarrar ou de chuchar.
Aos 2 anos
Formam-se as ligações entre neurónios (sinapses), sendo um período crítico para a aprendizagem e para o desenvolvimento das capacidades motoras. O cérebro atinge 50% do tamanho de um cérebro adulto e, até aos 2 anos, a densidade das ligações entre neurónios reduz-se para metade. É nesta fase que a criança estabelece a relação com o seu cuidador, desenvolve as suas capacidades motoras, começa a explorar o ambiente e a aprender com ele, enquanto também desenvolve o seu vocabulário.
Aos 3 anos
O cérebro terá cerca de 80% do tamanho do cérebro adulto. Cada neurónio formou uma média de 15 mil ligações (sinapses), e a criança é capaz de saltar, dizer pequenas frases e pensar de forma simbólica, recorrendo à sua imaginação.
Dos 2 aos 6 anos
As crianças começam a aprender a controlar as emoções e desenvolvem a linguagem.
Aos 5/6 anos
O cérebro atingirá cerca de 90% do seu tamanho. A criança será capaz de se autocuidar, brincar cooperativamente com outras crianças, contar, ler, desenhar, escrever e formular raciocínio primário, questionando o razão de as coisas serem como são.
Dos 7 aos 9 anos
Os lobos frontal e temporal crescem de forma significativa. A motricidade fina desenvolve-se e a visão do mundo torna-se menos fantasiosa e mais realista.
Entre os 6 e os 12 anos
O cérebro continua em crescimento e a amadurecer, mas mais lentamente. Este período é crítico para a aprendizagem académica e para o desenvolvimento social e emocional. Com a entrada na pré-adolescência, até aos 11 anos, inicia-se um surto no crescimento físico, e a criança torna-se consciente destas alterações.
Dos 12 aos 18 anos / Adolescência
O córtex pré-frontal, responsável pelo raciocínio complexo, pela tomada de decisões e pelo autocontrolo, está em consolidação, enquanto ocorrem alterações físicas e hormonais relevantes, podendo conduzir a comportamentos impulsivos e/ou de risco e a grandes variações de humor.
Aos 25 anos
O volume cerebral do adulto só é atingido quando se completa o seu desenvolvimento, o que acontece nesta idade. A evidência científica mais atualizada sublinha que a maturação cerebral se estende para além dos 18 anos, mas o desenvolvimento do córtex pré-frontal pode variar – ser aos 18 anos, para umas pessoas, ou aos 30, para outras. Apesar disso, o cérebro continua em constante adaptação ao longo da vida, em resposta às nossas experiências. A este processo chama-se neuroplasticidade.
Em Portugal, ser inimputável significa que uma pessoa não pode ser responsabilizada criminalmente, “por falta de capacidade mental para compreender a ilicitude dos seus atos”, refere Sónia Figueiroa. Em casos de adolescentes de menor idade, “existe um sistema legal específico para lidar com delitos [regime jurídico de responsabilidade penal de menores]”.
O córtex pré-frontal é a parte do cérebro responsável por funções como “a avaliação situacional, a ponderação de riscos, a tomada de decisões, o planeamento futuro, o comportamento social, entre outras”. Esta estrutura desenvolve-se com o tempo, e o total desenvolvimento das estruturas neuronais reguladoras só se verifica após os 20 anos, o que “pode levantar questões relativas ao limite da adolescência e à definição da idade adulta”, destaca a neuropediatra.
Desde o tubo neural, passando pela “migração de neurónios, pela formação dos hemisférios cerebrais, do corpo caloso, da mielinização, há várias etapas do desenvolvimento cerebral desde o estado embrionário”, explica Andreia Leitão, sublinhando que o desenvolvimento se caracteriza “por uma maior complexidade e refinamento”. E, durante todo o processo, podem ocorrer “desvios” que se traduzem “em perturbações de neurodesenvolvimento ou de saúde mental, em geral”.
Adultos mais inteligentes?
De acordo com a opinião das três especialistas, há tendência para se pensar que o cérebro adulto é relativamente estanque, ainda que esta ideia não seja totalmente clara. “As ideias convencionais acerca da inteligência sugerem que as pessoas atingem o seu pico cognitivo relativamente cedo – entre os 20 e os 30 anos – e que o que se segue é um longo e lento declínio, até atingirem a terceira idade”, explica Renata Ferreira Domingos.
Destacando o nível puramente biológico, as estruturas cerebrais desenvolvem-se, na sua totalidade, em média, aos 25 anos. “Contudo, há capacidades que atingem o seu pico com o decorrer do tempo. Enquanto o processamento de informação e a memória a curto prazo podem ser mais apurados no início da idade adulta, e diminuir ao longo dos anos, a inteligência emocional tende a aumentar ao longo da vida, assim como o vocabulário e o conhecimento acumulado acerca de factos e experiências vividas”, assinala a neuropsicóloga.
Além do diagrama genético de cada um, os estilos de vida, os estímulos físicos, emocionais e mentais a que estamos expostos, no contexto em que vivemos, influenciam o nível de inteligência e o potencial cognitivo de cada pessoa.
“A inteligência é a capacidade de raciocinar, compreender, aprender e resolver problemas de forma eficaz. Envolve a aptidão de utilizar conhecimento adquirido, adaptá-lo ao contexto e ao ambiente e de tomar decisões conscientes”, refere Sónia Figueiroa.
É um processo contínuo e desenvolvido ao longo de toda a vida, suscetível de “ser aperfeiçoado pela educação; e, embora possa depender de fatores inatos [capacidade de aprendizagem], também depende do esforço e de experiências de vida do indivíduo”, remata a neuropediatra.
O cérebro de grávida existe?
A pior zanga entre Meghan Markle e Kate Middleton aconteceu quando a primeira comentou que a segunda estava com um “cérebro de grávida”, ou seja, com falta de memória. Trivialidades à parte, isso existe mesmo?
Jorge Lima, obstetra, ginecologista e coordenador do Centro de Alto Risco Obstétrico do Hospital da Luz Lisboa, explica que as exposições hormonais durante a gravidez influenciam a memória. “Logo após a conceção, por ação hormonal, ocorrem profundas alterações anatómicas e fisiológicas, que se vão estabelecendo à medida que o desenvolvimento fetal o justifica. No entanto, pouco se sabe sobre os efeitos da gravidez no cérebro humano”, destaca. Nas suas consultas, muitas grávidas relatam que se sentem mais esquecidas, com mais incapacidade de pensar e/ou falar com clareza e mais dificuldades de concentração. “Alguns estudos com grávidas demonstraram que a maioria das mulheres tem mesmo a perceção de que a sua memória foi afetada pela gravidez.” Durante esta fase, ocorrem “picos inigualáveis de hormonas esteroides placentárias, nomeadamente de progesterona e de estrogénios, muito superiores aos níveis a que a mulher está exposta noutros eventos neuroendócrinos, por exemplo, num ciclo menstrual fisiológico”. Sabe-se que “as hormonas esteroides sexuais têm uma função importante na regulação da morfologia e do número dos neurónios, podendo causar alterações estruturais e funcionais no cérebro humano”.
Alguns estudos baseados na utilização da ressonância magnética demonstram que o cérebro da mulher grávida diminui progressivamente de volume desde o início até ao final da gravidez, retomando o seu tamanho pré-gravidez cerca de seis meses após o parto. “Outros estudos funcionais, utilizando essa mesma técnica imagiológica, revelaram que a gravidez está associada à redução do volume de massa cinzenta, especificamente em regiões cerebrais envolvidas na cognição social, e que essas modificações, tais como alterações nas funções do hipocampo, podem persistir até dois anos após o parto”, assinala.
Artigo publicado originalmente na VISÃO Saúde nº31