Ricardo Ferreira sabia que havia, no lado paterno da sua família, um gene que levava a uma maior probabilidade de desenvolver cancro do estômago. Foi esse cancro que matou o seu avô e alguns dos seus tios diretos, com outros familiares a desenvolverem a doença e a conseguirem controlá-la a tempo.
“O meu pai está, neste momento, nesse processo”, conta à VISÃO. Um exame genético realizado no IPO do Porto revelou, contudo, que Ricardo não tinha esse gene ativo. “Nas consultas com a minha antiga médica de família o assunto foi sendo abordado, mas ela sempre disse que, sem sintomas, a realização de análises de deteção precoce como a endoscopia e colonoscopia só deveria ser feita aos 50 anos”, diz.
Por isso mesmo, Ricardo realizou uma endoscopia apenas quando sentiu “algumas dores de estômago, por volta dos 40 anos”, tendo sido detetada a presença e atividade da bactéria que leva ao desenvolvimento do cancro do estômago, a Helicobacter pylori . “Fiz o tratamento adequado e tudo foi resolvido. Na altura, não foi considerada necessária a realização da colonoscopia”.
Ricardo só realizou uma colonoscopia aos 48 anos, que detetou um tumor no intestino. “Nunca apresentei qualquer sintoma, a não ser dois meses antes da primeira consulta com a minha atual médica de família, altura em que detetei uma coloração anormal nas minhas fezes que associei à presença de sangue”, conta. “Na consulta, tudo indicava que seria um caso de hemorroidas, mas por sensibilidade da minha médica de família foi decidido que faria uma colonoscopia no sentido de despistar qualquer hipótese de cancro, atendendo ao meu historial. Ficarei para sempre agradecido por isso”, afirma.
Em Portugal morrem, por dia, 32 pessoas por algum tipo de cancro digestivo, que inclui o do colorretal, pâncreas, esófago, fígado e estômago, e surgem quase 19 mil novos casos por ano. “Temos cerca de 60 mil pessoas com cancro e cerca de um terço são cancros digestivos”, informa Vítor Neves, presidente da Europacolon Portugal.
A incidência e a mortalidade destes cancros tem vindo a aumentar ao longo dos anos, de acordo com dados GLOBOCAN: só na Europa cerca de 500 mil pessoas são diagnosticados com cancro colorretal todos os anos, e 250 mil morrem, sendo este o segundo cancro mais frequente nas mulheres e o terceiro entre os homens.
De acordo com Vítor Neves, os principais fatores de risco para o cancro digestivo incluem tabagismo, consumo excessivo de álcool, obesidade, histórico familiar de cancro digestivo e idade avançada – o rastreio deve ser realizado a partir dos 50 anos ou antes, se houver historial em familiares diretos (pais ou avós).
Mas seguir dietas pobres em fibras e ricas em gorduras também constitui um fator de risco. “Historicamente, o Alentejo e Trás-os-Montes são as regiões que têm mais peso no cancro gástrico e cancro colorretal e os técnicos associam estes números à alimentação, vida sedentária” e à falta de acesso atempado ao diagnóstico precoce, explica o especialista.
“O consumo frequente de enchidos e o excesso de sal, carnes vermelhas e processadas aumenta a probabilidade de desenvolver cancro do intestino, por exemplo”, acrescenta, referindo que pode existir uma “combinação de fatores genéticos, hormonais e comportamentais”.
“O cancro mudou a minha perspetiva sobre o meu papel na sua prevenção. Se sempre tive uma vida saudável, nunca fumei, nunca abusei do álcool, nunca tomei nenhuma droga, sempre pratiquei desporto, e realizei uma alimentação equilibrada, sinto que agora sou mais rigoroso em tudo isto”, diz, por seu lado, Ricardo. “Reduzi a ingestão de carnes vermelhas na minha alimentação, privilegiando as carnes brancas, o peixe e os vegetais. Quando realizo alguma atitude de maior risco oncológico, reflito mais sobre o assunto e tomo decisões mais conscientes”, acrescenta.
O cancro colorretal pode ser detetado através da realização de uma pesquisa de sangue oculto nas fezes (PSOF), um exame realizado para detetar a presença de sangue nas fezes, não visível a olho nu, e que pode ser um sinal de várias condições.
Já com a realização da colonoscopia total “podem detetar-se pólipos, que podem ser retirados antes do desenvolvimento da doença”, afirma Vítor Neves. “Se detetado precocemente, o cancro do intestino pode ser estabilizado em mais de 90% dos casos”.
No caso de Ricardo, chegar ao diagnóstico não “não foi muito fácil” devido à falta de sintomas que podiam indicar a presença de um cancro no intestino. “Na realidade, estava mais preocupado com o aparecimento do cancro do estômago. Aliado a isto, como o protocolo indicava que só a partir dos 50 anos é que devia fazer a despistagem do cancro, só quando senti um sintoma é que a realizei. Devia ter sido mais cedo, essencialmente porque tinha um historial de cancro na família, mesmo sendo um cancro diferente”, afirma.
Para o cancro do estômago, existe um rastreio à infeção da Helicobacter pylori que, se for positiva, pode contribuir para o desenvolvimento do cancro gástrico, no futuro. Com o objetivo de tentar eliminar este fator de risco, arrancou nos Açores um programa-piloto para o rastreio dessa bactéria junto da população da Ilha Terceira, onde se verifica uma incidência superior de cancro de estômago em relação à média nacional. “Se os resultados forem positivos, o rastreio poderá ser alargado a outras regiões”, afirma Vítor Neves.
O que falta fazer?
“Apostar na prevenção e no rastreio de base populacional”, defende Vítor Neves. “O rastreio a nível nacional, de forma equitativa para todas as pessoas dentro da idade, ajudaria a evitar muitos casos”, garante ainda.
“O número de doentes continua a aumentar e o apoio nos hospitais é insuficiente. O prazo para fazer uma colonoscopia é de 6 a 12 meses em Portugal Continental. Assim, não conseguimos dar seguimento aos testes positivos, nem vamos a tempo de salvar vidas”, acrescenta.
O especialista alerta ainda para as “disparidades gritantes” que existem em toda a Europa a nível do rastreio do cancro colorretal. “Poucos países, como a Eslovénia e os Países Baixos, têm uma taxa de participação ativa de 65%. De forma alarmante, apenas 14% dos cidadãos europeus do grupo etário recomendado (50 – 74 anos) foram convidados para o rastreio de base populacional”, afirma.
E as escolas também devem desempenhar um papel, diz o especialistas, através da adoção de uma política uniforme no que respeita à alimentação nos refeitórios e à promoção de hábitos alimentares saudáveis.
“Na minha perspetiva de educador, considero que na escola fala-se de cancro de um modo geral, mas não especificamente do cancro digestivo”, defende Ricardo Ferreira. “Existem projetos de educação para a saúde, nomeadamente com a Liga Portuguesa contra o Cancro, que tentam promover a prevenção dos fatores de risco. Mesmo assim, considero que deveria ser abordado mais vezes o assunto”, diz. Mas, no geral, Ricardo considera que não se fala de forma suficiente do cancro digestivo, dos seus fatores de risco e de medidas de prevenção.
“É fundamental que as Unidades de Cuidados de Saúde Primários valorizem a sintomatologia que os utentes transmitem nas consultas ao seu médico de família”, acrescenta ainda Vítor Neves.