Alguma vez percebeu que a memória que tem de um evento é diferente da recordação de outra pessoa que esteve ao seu lado e assistiu exatamente ao mesmo? Ou alguma vez percebeu que as lembranças que tinha de uma situação, afinal, não coincidiam por completo com o que realmente aconteceu? Não se preocupe, que isso não significa que exista algum problema cognitivo. Charan Ranganath, professor de Psicologia e Neurociência na Universidade da Califórnia em Davis, EUA, explora este fenómeno no seu livro publicado este mês “Why We Remember: Unlocking Memory’s Power to Hold on to What Matters”.
“Duas pessoas podem lembrar-se do mesmo evento de formas completamente diferentes”, garante o professor, que explica ainda que as “motivações, objetivos, emoções e crenças” de cada um vão alterar a perspetiva de uma mesma situação e a forma como, mais tarde o vão reconstruir e recordar.
A influência das palavras
Ranganath recorda o estudo que Elizabeth Loftus, investigadora de Psicologia da Universidade de Washington, fez com base nos depoimentos feitos em tribunal por testemunhas e como estas poderiam ser influenciadas pelos advogados. No seu estudo, a investigadora apresentou vídeos de acidentes de trânsito a um grupo de voluntários e depois pediu-lhe para estimarem a velocidade em que seguiam os carros só pela observação das imagens. “Loftus descobriu que era muito fácil influenciar as perceções dos voluntários. Por exemplo, quando pediu a um grupo para adivinhar a velocidade com que os carros se deslocavam quando “tocaram” uns nos outros, a sugestão média foi de 50 km/h. Mas quando usou a frase “esmagados uns contra os outros”, o grupo estimou a velocidade em 65 km/h”. Segundo Loftus, isto prova que uma simples alteração de palavras pode corromper um testemunho em tribunal e também a perceção da realidade. Sendo assim, pergunta Ranganath, “como podemos distinguir o que é realidade do que é fantasia?”
Quando a imaginação interfere
O autor e especialista recorda que uma mente humana é analítica e imaginativa, o que faz com que esteja sempre a analisar possibilidades e a criar novos cenários. “Evocamos cenários para o que pode acontecer no futuro e questionamos sobre como seria o nosso presente caso os acontecimentos passados tivessem sido diferentes. Esses cenários imaginados deixam lembranças que nunca vivemos”. O pensamento crítico e racional impedem que estas memórias fabricadas substituam as lembranças verdadeiras, mas por vezes podem criar alguma confusão. Ranganath destaca que os cenários imaginados “são mais focados em pensamentos e sentimentos”, enquanto que os reais “têm detalhes mais vívidos”.
“Controlar as lembranças reais pode ser um desafio para quem tem uma imaginação mais fértil. Essas pessoas visualizaram situações com grandes detalhes, o que pode tornar mais difícil distinguir o que é imaginado do que foi vivido”.
Confabulação – acreditar piamente numa memória imaginada
Por vezes, as pessoas acreditam que as memórias que criaram correspondem à realidade. Acreditam com fervor nas invenções das suas mentes e são capazes de as defender sem hesitar e as descrever com pormenores convincentes. Quando isto acontece, falamos em confabulação e, segundo explica Ranganath, trata-se de um erro de memória que pode acontecer num período de maior cansaço (quando acreditamos que respondemos a uma mensagem, mas mais tarde percebermos que afinal não o fizemos), devido a uma idade mais avançada (devido à diminuição da atividade pré-frontal do cérebro), mas também devido a situações de patologias cerebrais severas, o que pode desencadear situações mais problemáticas.
Em 1906, aconteceu o caso mais notório de uma confabulação quando Richard Ivens confessou ter assassinado Elizabeth Hollister, sendo que mais tarde se provou que não tinha sido ele o autor do crime. Elizabeth Hollister foi estrangulada com um fio de cobre e o corpo abandonado perto da casa onde morava, em Chicago. Ivens encontrou o cadáver e tornou-se o principal suspeito do crime, apesar de não ter antecedentes criminais e de ter negado o envolvimento no assassinato. Contudo, após horas de um interrogatório intenso às mãos da polícia, que envolveu ameaças com uma arma, Ivens acabou por confessar. Durante o julgamento, Ivens prestou um depoimento oposto em pontos importantes do crime e testemunhas afirmaram que teria sido impossível ter sido ele o assassino devido a álibis credíveis. Mais tarde ele reafirmou-se inocente e negou ter lembranças do crime. Hugo Munsterberg, na altura especialista em Psicologia da Universidade de Harvard, analisou o caso e concluiu que Ivens era inocente. Contudo, o tribunal declarou-o culpado e ele foi enforcado um mês após a leitura da sentença.
“Pode ser difícil entender o motivo para um homem inocente confessar um assassinato que não cometeu, mas infelizmente o caso de Ivens não é o único. Existem muitos casos de pessoas inocentes que tiveram recordações convincentes, mas falsas, do seu envolvimento em crimes horríveis”, escreve Ranganath.
Lembrar o que não é real
“As memórias não ficam gravadas em pedra, estão em constante mudança”, destaca o especialista, referindo que a aprendizagem altera perceções antigas. Além disso, explica que o próprio cérebro se ajusta e por isso pode ampliar aspetos de uma lembrança e diminuir outros.
Ranganath destaca ainda o papel da desinformação na criação de memórias imaginadas que são tidas como verdadeiras, especialmente se tiverem uma origem considerada credível, e diz que crianças e idosos são mais suscetíveis a esta sugestão. Por isso mesmo muitas pessoas estão convencidas de terem experimentado eventos durante a infância que nunca ocorreram, mas que podem ter visto num filme ou ouvido num relato feito por adultos.
“Felizmente, os efeitos da implantação da memória podem ser revertidos se a pessoa for alertada de que pode ter sido mal informada ou for encorajada a ser cética quanto à precisão das próprias memórias”.