As depressões não são todas iguais. É natural, por isso, que os tratamentos não tenham a mesma eficácia em todos os doentes. No caso da depressão resistente ao tratamento (DRT), a ineficácia das terapêuticas convencionais exigia que fosse encontrada outro tipo de soluções.
Vários ensaios clínicos já tinham demonstrado a eficácia superior de um novo tratamento, o spray nasal de escetamina (NS) desenvolvido pela farmacêutica Janssen, comparativamente com placebos.
O que um estudo recentemente veio concluir, o ESCAPE-TRD, coordenado pela Janssen, é que a escetamina, em comparação com outra alternativa já aprovada, a quetiapina de libertação prolongada, ambas administradas em combinação com um antidepressivo convencional, apresenta taxas de remissão superiores e, a longo prazo, ainda mais elevadas.
Os antidepressivos tradicionais atuam na bioquímica cerebral e interferem em três neurotransmissores associados à sensação de bem-estar: a serotonina, a noradrenalina e a dopamina. Já a escetamina atua sobre o glutamato, outra molécula da rede neural, reconhecida por estimular áreas do cérebro ligadas às emoções. O seu principal efeito é fortalecer e criar sinapses, as conexões entre os neurónios.
A Agência Europeia do Medicamento já tinha aprovado o spray nasal de escetamina (NS), quando combinado com um antidepressivo convencional (SSRI ou SNRI), no caso de adultos com Transtorno Depressivo Major resistente ao tratamento, e que para um episódio depressivo moderado a grave, não responderam a pelo menos dois tratamentos antidepressivos distintos. Contudo, em março de 2022, o Infarmed não recomendou a indicação terapêutica financiada, pelo que, em Portugal, apesar deste medicamento poder ser utilizado, não é comparticipado e implica custos elevados.
“O que estava a ser pedido por muitos reguladores, era perceber como é que o SP se compara em relação a uma alternativa que já existe e se ele é melhor, pior ou igual aos outros”, explica Albino Oliveira-Maia, Diretor da Unidade de Neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud e coordenador nacional do estudo em Portugal. E para isso foi usada a quetiapina-LP oral, um antipsicótico atípico originalmente autorizado para o tratamento de doenças como a esquizofrenia, mas cada vez mais utilizado, e com a aprovação de agências reguladoras, como tratamento adjuvante para episódios de depressão de difícil tratamento. “A quetiapina é atualmente um dos poucos medicamentos alternativos complementares, aprovados para doentes com quadro clínico depressivo major e resposta inadequada ao tratamento antidepressivo contínuo”, adianta o neuropsiquiatra.
O combate à DRT é de importância inequívoca, face à escassez de opções eficazes. Um estudo do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) revelou que, embora um terço dos doentes com depressão tenha encontrado remissão com o tratamento inicial, os tratamentos subsequentes tiveram retornos decrescentes, com apenas 10-15% a atingir a remissão na terceira tentativa de tratamento.
Em contraponto, o estudo da Janssen, publicado no New England Journal of Medicine, apresenta resultados mais animadores. Foram examinados mais de 600 doentes, divididos em dois grupos: um auto administrou a quetiapina-LP em casa, enquanto o outro recebeu a escetamina-SN em ambiente hospitalar supervisionado. Simultaneamente, ambos os grupos continuaram com medicamentos antidepressivos convencionais: ou um inibidor seletivo da recaptação de serotonina (ISRS, por exemplo fluoxetina) ou um inibidor seletivo da recaptação de serotonina e norepinefrina (SNRI, por exemplo venlafaxina). “O estudo durou 32 semanas, um período superior ao dos ensaios típicos”, afirma Oliveira-Maia. “Isso permitiu-nos avaliar os resultados do tratamento a curto e longo prazo. Durante todo esse tempo, monitorizámos de perto as respostas dos participantes, os efeitos colaterais e a eficácia geral dos medicamentos”.
Após oito semanas, ambos os grupos ultrapassaram a taxa de remissão de 10-15% observada no estudo do NIMH. Contudo, 27,1% dos doentes que tomaram a escetamina-SN alcançaram a remissão, em comparação com 17,6% do grupo que tomou a quetiapina XR, com ambos a continuar a sua medicação com antidepressivos convencionais (SSRI ou SNRI). Os dados de longo prazo foram ainda mais promissores. A proporção de doentes que alcançaram a remissão e a mantiveram sem recaída até a semana 32 foi de 21,7% para o grupo da escetamina-SN e de 14,1% para o grupo da quetiapina-LP.
As taxas de remissão também continuaram a aumentar com o tempo. Os dados às 32 semanas mostram que quase metade dos doentes que seguiram com o tratamento com a escetamina-SN – incluindo aqueles que não estavam em remissão na semana oito – alcançaram a remissão. Em contraste, apenas um terço daqueles que continuaram com a quetiapina-LP atingiram este estado.
Além da eficácia terapêutica, os parâmetros de segurança foram avaliados criteriosamente. Ambas as opções de tratamento registaram taxas muito baixas de eventos adversos graves, como mortalidade ou ideação suicida.
Para Albino Oliveira-Maia, “o verdadeiro desafio agora passa da investigação para a política. O impacto da escetamina-SN só pode ser concretizado se os doentes tiverem acesso imediato à mesma”. A esperança é que este estudo faça o Infarmed mudar de posição. “Em Portugal não temos medicamentos especificamente aprovados para a depressão resistente ao tratamento e isso é complicado, porque estes doentes são em número significativo. É natural que os reguladores queiram a maior quantidade possível de informação, tanto em relação à eficácia, como à segurança. Este trabalho fornece essa informação de forma cabal.”
Diferenças entre cetamina e escetamina
Nos últimos tempos, muito se tem falado sobre a administração de cetamina em clínicas privadas e em alguns (poucos) hospitais públicos portugueses. “São moléculas ligeiramente diferentes. A cetamina é um fármaco que inclui a escetamina, mas também tem outras conformações da molécula”, explica Albino Oliveira-Maia. Além disso, “a formulação é completamente diferente: A cetamina é com injeções endovenosas; e a escetamina tem uma administração intranasal”. Mas a diferença mais significativa está na quantidade e na qualidade da evidência. “Para a escetamina temos um programa de investigação de uma companhia farmacêutica que testou em milhares de doentes uma determinada abordagem, de forma muito consistente, para poder obter a regulamentação e, para isso, há uma clareza significativa sobre a forma como deve ser utilizado, com indicações sobre o diagnóstico [por enquanto, só para depressão resistente ao tratamento], as doses, a escalada das doses, a frequência dos tratamentos e um conjunto de evidência alargado sobre as questões da segurança, os efeitos colaterais, como estes podem ser prevenidos, que nos permitem informar melhor os nossos doentes e tomar melhores decisões. Em relação à cetamina temos também bastantes dados, mas muito variáveis quanto à administração, as doses…”.
Adiante-se que é necessária a administração do spray nasal sob supervisão direta de um profissional de saúde, em contexto de hospital de dia, mas não é obrigatório um processo terapêutico associado ao medicamento. “Tem de haver supervisão dos estados de consciência antes do doente ter alta, uma observação de aproximadamente duas horas. A maior parte dos doentes não descrevem efeitos psicadélicos muito significativos do ponto de vista de alterações de perceção ou emocionais muito profundas. A descrição feita é mais do tipo dissociativo”, explica o neuropsiquiatra. “É inevitável que as pessoas se sintam pouco confortáveis com as alterações do estado de consciência, mas genericamente, é um tratamento bastante bem tolerado. O abandono do tratamento é relativamente limitado, até em comparação com o tratamento convencional”, adianta. A melhoria da qualidade de vida, presume-se, assim o dita.