Provavelmente, só ouviu falar da doença no Dr. House ou em qualquer outra série televisiva sobre diagnósticos médicos complicados. À partida, a insensibilidade à dor física até poderia ser encarada como uma bênção. Mas imagine um pequeno corte que passa despercebido e acaba por infetar, ou uma queimadura provocada porque alguém repousa a mão inconscientemente num forno quente. Apesar do desconforto, a dor funciona como um sinal de alerta essencial, porque sinaliza um problema (sejam lesões, inflamações ou temperaturas extremas), leva as pessoas a procurarem assistência médica e protege de danos futuros. São enormes os riscos da denominada neuropatia hereditária sensorial e autonómica (NHSA), uma doença extremamente rara que mata certas células nervosas do corpo e não permite sentir dor. Basta pensarmos que mesmo os ferimentos menores podem resultar em envenenamento do sangue, úlceras ou mutilações. Exatamente por não existirem muitos casos, não há investigação e dados suficientes sobre os mecanismos genéticos que as provocam. Um cenário que se pretende ultrapassar, com a criação da Rede Europeia para Neuropatias Hereditárias Sensoriais e Insensibilidade à Dor (ENISNIP).
O projeto transnacional, iniciado em 2020, reúne especialistas de sete centros de investigação sedeados na Áustria, Alemanha, Turquia, Suíça, Suécia e República Checa, e incentiva a partilha de conhecimentos e competências entre os diferentes países. O objetivo é “aumentar a conscientização sobre estes distúrbios raros”, além de “acelerar os testes genéticos e a descoberta de novos genes para melhorar o atendimento ao paciente e o diagnóstico a longo prazo”, refere o site da ENISNIP. Pretende-se ainda criar um registo de todos os casos conhecidos para permitir que os especialistas acedam a estes dados no futuro. “Isso nos permitirá estimar quantos pacientes são afetados em toda a Europa e quais mutações responsáveis pelo desencadeamento de um determinado caso. Esperamos que esses números agregados motivem as empresas farmacêuticas a trabalhar no desenvolvimento de terapias”, aponta Michaela Auer-Grumbach, neurologista da Universidade de Medicina de Viena, uma das envolvidas na rede, num artigo publicado na Scilog, a revista do FWF, o fundo de ciência austríaco. Na Áustria, apenas 50 pessoas estão diagnosticadas.
Existem vários subgéneros da doença, categorizados pelos graus de gravidade e faixas etárias envolvidas. O risco de ferimentos autoinfligidos é particularmente alto em crianças pequenas, porque aprendem sobre o ambiente que as rodeia a tocar em coisas e a colocar objetos nas suas bocas. “Uma criança saudável sente dor quando morde a própria língua ou os lábios. Mas crianças com neuropatias tão raras podem sofrer ferimentos terríveis e até mutilações na boca e nos dedos”, diz Auer-Grumbach. Além disso, a doença afeta células nervosas do sistema nervoso autónomo, que funciona em segundo plano e regula aspetos como a digestão, os batimentos cardíacos e a sudação. Bebés com certas formas congénitas de NHSA podem ter graves crises de febre, porque não suam e, portanto, são incapazes de regular a temperatura do corpo.
Outras pessoas só desenvolvem a doença mais tarde na vida, sendo afetada, principalmente, a sensação de dor nas mãos e nos pés. Auer-Grumbach dá o exemplo de pacientes que a detetaram pela primeira vez durante o serviço militar. Só após marcharem muito tempo com botas grosseiras, se aperceberam que tinham ferimentos. “O atrito causa uma lesão que, em pessoas saudáveis, cicatriza em poucos dias. Mas com essas formas de neuropatia, essa ferida pode infetar rapidamente, penetrar no osso e até levar à ulceração óssea”. Não faltam desafios na vida quotidiana para estes pacientes. “É importante ensinar-lhes medidas comportamentais preventivas”, afirma a neurologista. Nunca devem andar descalços, devem verificar a presença de corpos estranhos nos sapatos, usar calçado macio e evitar até os ferimentos menores. Quando se tratam de crianças, tais regras são um desafio particularmente exigente. “Como a doença é tão rara, é muito difícil para os pais integrarem seus filhos num ambiente social. A começar pela creche, onde teria de ser garantido treino específico para todos os educadores”, explica.
Basta existir um único gene defeituoso no DNA para causar a doença. Até agora, os investigadores associaram cerca de 20 genes ao desenvolvimento da NHSA e isso reflete-se no amplo espetro de fenótipos clínicos, uma vez que diferentes processos biológicos na célula podem ser perturbados. Exceto no que diz respeito a um pequeno número de terapias direcionadas para subtipos específicos de NHSA que estão atualmente a ser investigados em ensaios pré-clínicos, existem apenas opções de tratamento sintomático. Setembro de 2023 é a data oficial de término do projeto, mas a equipa “continuará a comparar e discutir casos”, confirma Auer-Grumbach. “É importante que todas as pessoas que apresentam os sintomas correspondentes sejam testadas quanto à causa genética.”