Talvez seja difícil recordar uma época na História em que se tenha falado mais de peso corporal do que atualmente.
Por um lado, cada vez mais estamos conscientes do perigo que representa o excesso de peso, por outro, médicos e nutricionistas enfatizam a importância de encarar a obesidade como uma doença e tratá-la como tal.
Os especialistas repudiam quem tenta “culpar” os doentes e termos como body-positivity invadiram as redes sociais, nos últimos anos, tentando mudar o paradigma de uma cultura ancorada no poder de ideais de beleza impossíveis de alcançar.

Dietas da moda à parte, a questão é séria e, mais do que resolvê-la doente a doente, as organizações começam à procura de soluções que permitam uma mudança estrutural dos hábitos de vida das sociedades, com o objetivo de promover a saúde ao longo da vida.
É o caso do projeto PAS GRAS: redução de riscos metabólicos, determinantes ambientais e comportamentais da obesidade em crianças, adolescentes e jovens adultos, um projeto liderado pela Universidade de Coimbra, que reúne 18 entidades de oito países europeus e vai receber 9,5 milhões de euros, durante cinco anos, para combater a obesidade em crianças e jovens.
O lançamento oficial do PAS GRAS, que decorre esta quinta-feira em Coimbra, conta com a presença de Philipp Scherer, cientista reconhecido mundialmente pelo estudo do tecido adiposo e do papel da gordura na saúde e na doença.
O também responsável pela descoberta da adiponectina, hormona libertada apenas pelo tecido adiposo, que regula a energia gasta e armazenada pelo corpo, falou com a VISÃO sobre a importância de encarar a obesidade como uma doença e os novos fármacos que trazem cada vez mais epserança a médicos e doentes
Atualmente, há mais crianças obesas do que há 20 anos ou o problema tem vindo a melhorar?
Penso que temos ainda um grande problema. Os números tinham parado de crescer, mas, com a Covid, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, assistimos a uma nova subida, bastante significativa, devido à falta de atividades no exterior e ao facto de as crianças terem de passar muito mais tempo em casa, por vezes sem poderem mesmo ir fisicamente à escola. Isso, basicamente, provocou um pico de obesidade seguido também de um pico na diabetes infantil.
Diabetes tipo 2 em crianças?
Sim. Quando pensamos na diabetes infantil, pensamos em diabetes tipo 1, mas, dadas as taxas de obesidade infantil, já não é incomum aparecerem crianças com diabetes tipo 2.
Que mudanças temos de fazer, enquanto sociedade, para reverter esta situação o mais rapidamente possível e evitar um futuro onde muito mais adultos terão diabetes e excesso de peso?
Uma criança obesa, frequentemente, acaba por ser um adulto obeso. E o número de anos que uma pessoa passa nesse estado de obesidade aumenta o risco de vir a ter doenças cardiovasculares, diabetes e até mesmo cancro.
O bom velho conselho que se dá a alguém com excesso de peso é: “Devias comer menos e fazer mais exercício físico”. Todos sabemos que isto não funciona realmente, porque as pessoas até podem fazer uma dieta e manterem um plano de treinos durante algumas semanas, mas invariavelmente voltam a ganhar peso.
Uma intervenção a nível das crianças é uma tarefa extremamente difícil, pois sabemos que, obviamente, a solução passará por alterações comportamentais. Talvez as mudanças tenham de ser graduais, incentivando as crianças a habituarem-se a praticar atividade física de forma regular, seja na escola ou depois das aulas, e a reduzirem o número de horas que passam nos telefones e nos tablets.
Existem mecanismos celulares hereditários que fazem com que certas crianças, por mais que tentem, nunca consigam perder peso?
Oh sim, há definitivamente uma componente genética na obesidade. Pode ser relativamente simples, no sentido em que temos uma única mutação num gene muito específico, mas, para a maioria das pessoas, é uma combinação de uma série de genes que dá origem à maior ou menor propensão para ganhar peso.
Não podemos afirmar que a obesidade depende exclusivamente de uma falta de auto-disciplina. É uma doença, ainda que tenha um elemento comportamental associado. Pode-se tentar alterar esse elemento, mas toda a gente tem de jogar com a base genética com que nasceu.
Dizer simplesmente para uma pessoa “fechar a boca” é, então, profundamente errado…
Frequentemente, ouvimos dizer que as pessoas obesas não se conseguem controlar, que só querem comer e que se fossem mais disciplinadas então seriam capazes de perder peso. Não é assim tão simples.
Todos estamos programados para comer, porque nos faz sentir bem e porque temos de fazê-lo para sobreviver. São mecanismos centrais relacionados com comportamentos alimentares, programados no hipotálamo dos nossos cérebros. Por esta razão, deixar de comer, em certas pessoas, pode até conduzir a depressões.
Por outro lado, atualmente, ouvimos cada vez mais falar de “body positivity” e da necessidade de aceitar todos os tipos, formas e tamanhos de corpo. Este discurso pode conduzir a um esbatimento da linha entre o que é e não é doença?
É uma pergunta complicada. Em primeiro lugar, como temos a tal questão genética, não podemos culpar o indivíduo pela obesidade. Além disso, o facto de existirem tratamentos farmacológicos para melhorar um problema é basicamente a confirmação de que ele é uma doença. E existem, de facto, tratamentos farmacológicos para a obesidade. Portanto, segundo esta lógica, a obesidade é uma doença.
É sempre uma doença?
É preciso aceitarmos que nem toda a gente que é obesa está necessariamente em risco de desenvolver diabetes ou doenças cardiovasculares. Passamos muito tempo a definir aquilo que se chama obesidade metabolicamente saudável. É uma minoria de pessoas que, apesar de serem obesas ou muito obesas, geneticamente encontraram uma forma de colocar as calorias em excesso maioritariamente na gordura subcutânea, que é a gordura saudável, e não desenvolvem diabetes nem doenças cardiovasculares.
Há quem considere muito perigosa esta definição de pessoas com obesidade metabolicamente saudável, pois teme que seja um incentivo à obesidade. Não é. Algumas pessoas conseguem apenas ter excesso de peso ou obesidade e não sofrer devido a isso, pois os seus corpos depositam o excesso de gordura no local certo.
Ao contrário do que se pensava até há alguns anos, o tecido adiposo é uma autêntica fábrica de hormonas. Qual a importância deste tecido para a saúde do nosso corpo?
A melhor forma de explicar a importância do tecido adiposo é observarmos o que acontece a quem não tem qualquer tipo de gordura, seja por causas naturais ou induzidas. Como não há nenhum local nos seus corpos para depositar o excesso de gordura, esta acaba por ir para o fígado e para os músculos, tecidos que não estão preparados para receberem tantos lípidos e acabam por tornar-se muito disfuncionais.
Por outro lado, muitos de nós também têm gordura a mais. Portanto, gosto de pensar nas células de gordura como células de gordura felizes e células de gordura irritadas. À medida que produzimos um número excessivo de células de gordura, estas começam a passar de felizes a irritadas, tornam-se inflamadas, fibrosas e metabolicamente inflexíveis, alterando o tipo de hormonas que costumam produzir.
Essas células de gordura “irritadas” passam a ser então uma fábrica de hormonas erradas?
Mais ou menos. Deixamos de ter uma célula que produz hormonas como a adiponectina, que ajuda a nível da sensibilidade à insulina, do sistema imunitário, da atividade anti-inflamatória e da regulação da energia gasta e armazenada pelo corpo, e passamos a ter uma célula que produz uma quantidade muito menor desta hormona, perdendo grande parte destes benefícios que acabei de mencionar.
No futuro, poderemos manipular esta hormona para promover a perda do excesso de peso?
Seguramente poderia funcionar e algumas pessoas já estão a estudar formas de conseguir aumentar a sua produção no nosso corpo, mas, ao mesmo tempo, surgiram fármacos para a perda de peso, de tal forma eficazes, que são capazes de resolver a maior parte do problema. É que, assim que perdemos peso, a adiponectina sobe.
Está a falar dos famosos fármacos cuja substância ativa é o semaglutido. Como é que estes medicamentos destinados à diabetes se tornaram tão populares para a perda de peso?
O que acontece é que os medicamentos cuja substância ativa é o semaglutido atuam como agonistas dos recetores de GLP-1, uma hormona fisiológica que regula o apetite e a glicose. Apesar de terem surgido para a diabetes, rapidamente, verificamos que eram muito eficazes na perda de peso.
Além de reduzirem a quantidade de comida que uma pessoa consegue comer, fazem-no de uma forma muito saudável. Ou seja, abrandam os movimentos gástricos, fazendo com que a comida permaneça mais tempo dentro do corpo e nós nos sintamos satisfeitos por mais tempo. E também aumentam um pouco a velocidade do metabolismo.
E estamos só no início?
Sim. Descobrimos que, se em vez de estimular apenas o recetor do GLP-1 estimulássemos também o recetor do GLP, o medicamento torna-se ainda mais eficaz e as pessoas perdem, em média, 20% a 25% do peso. Pode não parecer muito à primeira vista, mas, numa pessoa com 100kg, perder 25kg é muito.
Estes medicamentos de segunda geração já foram aprovados para a diabetes e, daqui a um mês ou dois, serão aprovados também para a perda de peso.
O que é que acontece perante uma perda de peso deste tipo?
Muitas coisas melhoram de forma dramática. Se a pessoa era diabética, a diabetes melhora consideravelmente e, em alguns casos, desaparece mesmo, tal como o fígado gordo. Com uma perda de peso na ordem dos 25% diminui ainda o risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares.
Acabei de chegar de uma reunião da Associação Americana de Diabetes onde já foram apresentados dados dos ensaios clínicos de fase 2 para a terceira geração deste tipo de fármacos. Esta nova geração vai estimular um terceiro recetor e é ainda mais eficaz do que as versões anteriores. Ainda não foi aprovada, nem mesmo para a diabetes, mas, de acordo com os dados dos ensaios clínicos, o medicamento promete aumentar a capacidade que os anteriores tinham no gasto de energia.
Tendo em conta que a obesidade é uma doença crónica, os doentes terão de tomar estes fármacos durante toda a vida? E podem “habituar-se” a eles, precisando de doses sempre mais elevadas?
Até agora, nada indica que o corpo crie resistência ao medicamento ao longo do tempo, precisando de doses superiores. Porém, se o doente parar de tomar o medicamento, o peso volta imediatamente. Muito poucas pessoas têm disciplina para mudar radicalmente o estilo de vida ao ponto de compensar a falta do medicamento e manter o peso baixo.
Gosto de comparar a situação à hipertensão. Se alguém é hipertenso tem de tomar medicação para o resto da vida. Pura e simplesmente não pode parar. E com estes medicamentos parece ser igual. Pelo menos por agora, pensamos que os doentes terão de tomá-los para o resto da vida.
E quais as consequências?
Teremos de avaliá-las daqui a 10 anos, porque os fármacos são ainda são muito recentes.