Começar o dia com um pão branco embalado, seguir na manhã com umas bolachas de chocolate, almoçar uma pizza congelada, lanchar uma barrinha de cereais e rematar com uma refeição pré-congelada, aquecida no micro-ondas. Há dias assim, demasiados, em que a pressa ou a falta de paciência para cozinhar nos afastam da comida real, fresca, confecionada em casa, num equilíbrio perfeito entre proteínas, vegetais, frutas e cereais integrais.
Nesses dias, a consciência pode pesar-nos, sabendo que estamos a agredir o organismo e a abrir caminho para algumas doenças que conhecem a sua origem numa alimentação deficiente, à base de produtos ultraprocessados, carregados de gordura, açúcar e aditivos, como é o caso da diabetes, obesidade, das patologias cardiovasculares, da síndrome metabólica ou de alguns tipos de cancro. Não confundir com alimentos processados, como queijo ou iogurtes.
Nada disto é novo, mas nunca parece de mais repeti-lo. E o assunto entra aqui a propósito de um estudo publicado no JAMA Neurology que foi mais além do que já se conhecia. Na realidade, dizem os seus autores, basear a alimentação em comida que não é bem comida – definem-na como “formulações industriais de substâncias alimentares (óleos, gorduras, açúcares, amido e isolados de proteínas) que contêm pouco ou nenhum alimento completo e normalmente incluem aromatizantes, corantes, emulsionantes e outros aditivos alimentares” – não afeta apenas o nosso bem-estar físico, mas também o mental.
A investigação no terreno durou nove anos e recaiu sobre mais de 10 mil funcionários públicos, com idades entre os 35 e os 74 anos, provenientes de seis cidades brasileiras. Concluiu que, se mais de 20% da ingestão diária de energia, algo como 400 calorias numa dieta de 2000, for proveniente de alimentos ultraprocessados, poderemos estar a aumentar o risco de declínio cognitivo.
A parte do cérebro envolvida na capacidade de processar informação e tomar decisões é especialmente afetada pelo consumo deste tipo de alimentos, sem se ter encontrado uma explicação para esta ligação negativa. Mas no estudo em questão percebeu-se que quem mais consome ultraprocessados tem uma taxa de declínio cognitivo global 28% mais rápida do que as pessoas que se ficam por menores quantidades, talvez por que a baixa quantidade de fibras típica destes produtos afeta duramente a microbiota intestinal (que é, já se sabe, o nosso segundo cérebro).
Há no entanto uma boa e importante notícia saída da investigação: se a qualidade da dieta global for elevada, ou seja, se a pessoa ingerir muitos vegetais, fruta, cereais integrais e fontes saudáveis de proteínas, a má relação entre os alimentos ultraprocessados e o declínio cognitivo desaparece.
A equipa de investigadores, liderada pelas médicas Natália Gomes Gonçalves e Cláudia Kimie Suemoto, da universidade de São Paulo, esperam que estas conclusões, ainda que carecendo de ensaios clínicos para comprovar de onde vem esta correlação, possam incentivar os governos dos países em que o consumo destes produtos é maior, como os EUA e o Reino Unido, a criarem recomendações oficiais para limitar o consumo de ultraprocessados, preferencialmente através de uma carga fiscal elevada.
“Parem de comprar ultraprocessados”
Uma outra pesquisa, publicada no ano passado, na revista da especialidade Neurology debruçou-se sobre a relação entre dietas ricas em ultraprocessados e o desenvolvimento de demência vascular e Alzheimer. Neste estudo, 72.083 indivíduos, residentes no Reino Unido, com mais de 55 anos, sem diagnóstico de demência ou Alzheimer, foram acompanhados durante 10 anos. No final, os investigadores concluíram que o maior consumo de alimentos processados estava de facto associado a mais risco de desenvolver demência por Alzheimer e demência vascular.
Nos EUA, também investigaram a relação de uma dieta rica em ultraprocessados com a depressão e a ansiedade. Neste estudo, com mais de 10 mil participantes que consumiam grandes quantidades deste tipo de comida foi estabelecida essa relação direta. “Verificámos um aumento significativo de dias com sintomas mentais adversos para aqueles que recebiam mais de 60% das calorias diárias de alimentos ultraprocessados”, referiu Eric Hecht, epidemiologista no Schmidt College of Medicine da Universidade da Florida. “Não sendo uma prova de causa e efeito, podemos dizer que parece haver uma inegável associação.”
As autoras do estudo brasileiro passaram ainda uma mensagem direta aos consumidores: “As pessoas precisam de perceber que deviam cozinhar mais e preparar a sua própria comida a partir do zero. Eu sei, dizemos sempre que não temos tempo, mas não demora assim tanto. E vale a pena, porque vai proteger o seu coração e o seu cérebro da demência ou da doença de Alzheimer”, aconselhou Cláudia Suemoto. “A mensagem que queremos transmitir com este estudo é: Parem de comprar produtos ultraprocessados.” Ouviram?