Vânia Silva tem 38 anos e, desde os 13, quando teve a primeira menstruação, tem dores fortes durante os períodos menstruais. Contudo, foi diagnosticada com endometriose profunda apenas com 33 anos, em 2017. “Aos 18 anos, queixei-me ao médico de família, que relativizou as dores, afirmando que passavam tomando a pílula. Aos 19, consultei uma ginecologista no privado, que me receitou a pílula para ajudar nas dores, afirmando que estava tudo bem”, conta à VISÃO.
Uns anos mais tarde, já perto dos 30, a engenheira civil voltou a pedir uma consulta devido a “vários episódios de dores fortes na menstruação”, mas a ginecologista apenas lhe receitou uma pílula diferente. Quando começou a tentar engravidar, aos 31 anos, e deixou de tomar este método contracetivo, o cenário piorou.
“Conforme os meses foram passando, as dores começaram a surgir cada vez mais intensas: dores menstruais, dores nas relações sexuais, dores a evacuar, dores musculares, cansaço, obstrução intestinal, inchaço, diarreia, desconforto físico, irritação, stress e ansiedade”, relembra. Nesta fase, Vânia começou a tomar vários medicamentos para as dores e a colocar sacos de água quente na zona abdominal, mas o alívio era muito escasso. “A dor era tão intensa que começava a vomitar e perdi peso e massa muscular”.
Além disso, teve de fazer fisioterapia e osteopatia devido às fortes dores na zona abdominal, que apanhavam o nervo ciático. “Nos primeiros dias da menstruação e na ovulação, as dores impediam-me de ir trabalhar, não conseguia andar ou sentar-me”, afirma.
Foi apenas depois de idas às urgências e de contactos com a Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose (MulherEndo) que Vânia conseguiu uma consulta com um médico especialista em endometriose, que por fim confirmou o diagnóstico de endometriose profunda. “Foram momentos de muitas lágrimas, angústia, tristeza e dos “porquês”, de pensar se alguma vez iria ser mãe”, refere.
Vânia Silva foi submetida a uma cirurgia, “que correu muito bem”, não tendo sido necessário “retirar “um pedaço” do intestino”. A partir daí, começou a ter ainda mais cuidados na alimentação, a fazer exercício físico e a mudar de hábitos de vida. “Como sempre exerci direção de obra nas empresas onde trabalhei, sempre estive sujeita a altos níveis de stress e ansiedade durante todos estes anos. Após uma conversa com o médico, tive de mudar de atitude, por uma vida melhor, sem dores e com saúde”, conta a engenheira, que foi acompanhada por uma nutricionista para seguir uma dieta específica à sua condição e por um instrutor de exercício físico, que “conhecia a doença” e que realizou um plano de treino especializado.
O médico alertou-a, também, para o facto de ter apenas um ano para tentar engravidar de forma natural. Caso não conseguisse, teria de iniciar os tratamentos de fertilidade. A endometriose é a causa conhecida mais frequente de infertilidade, prevendo-se que, das mulheres que apresentam infertilidade, entre 25% e 50% também tenham endometriose. Felizmente, em agosto de 2018, Vânia Silva conseguiu engravidar naturalmente. Depois do nascimento do Pedro, também chegou, em 2021, a Alice.
A engenheira continua, ainda assim, a ter consultas de rotina de 6 em 6 meses, além de tomar a pílula contínua, para amenizar as dores durante as menstruações, sendo um caso em tantos que existem no País: muitos não têm o mesmo desfecho feliz, mas também há mulheres que não sabem que têm endometriose, já que se fala muito pouco da doença “devido à falta de formação de médicos e especialistas”, acredita Vânia. “O contexto social ainda considera que as dores menstruais são normais… no tempo das nossas avós e mães era tudo normal! Quando falo sobre a doença à alguém, não conhecem”, acrescenta.
Hélder Ferreira, médico ginecologista-obstetra, diz, do mesmo modo, que “muitas mulheres acreditam que as suas experiências de menstruação são normais, muitas vezes devido ao que as suas mães lhes contam” e que, por isso, “frequentemente não procuram tratamento”. “Além disso, os profissionais médicos acham difícil diferenciar queixas menstruais “normais” de sinais ou sintomas sugestivos de endometriose”, afirma também.
O médico esclarece que, ao contrário de outras condições ginecológicas, não existem grandes ferramentas de diagnóstico para a endometriose, já que não há um exame de sangue específico ou um estudo de imagem que possa confirmar definitivamente a condição. Pode, por isso, ser difícil identificá-la.
Por isso mesmo, os números exatos da prevalência da doença em Portugal não são conhecidos. “Determinar a prevalência de endometriose na população geral é um desafio, porque algumas doentes são assintomáticas, aquelas com sintomas podem ter apresentações variadas e inespecíficas e o diagnóstico definitivo geralmente requer cirurgia”, explica o especialista.
Ainda assim, estima-se que no País existam perto de 300 mil mulheres portadoras de endometriose, de acordo com dados dos Censos de 2021. No mundo, a estimativa ultrapassa as 180 milhões de mulheres, prevendo-se que aproximadamente 10% das mulheres em idade reprodutiva tenham endometriose.
Relativamente aos sintomas, Hélder Ferreira explica que a endometriose se trata de uma doença benigna mas que, “nos casos mais severos, pode comprometer a função renal, o trânsito intestinal e causar outras comorbilidades mais exuberantes, dependendo da localização e extensão da doença”. Além disso, afirma que parece haver um risco aumentado de cancro do ovário. O risco de transformação maligna da endometriose foi estimado em 1% para mulheres na pré-menopausa e de 1% a 2,5% para mulheres na pós-menopausa, esclarece ainda.
“A maioria das doentes com endometriose está em idade fértil e, portanto, em idade ativa. Logo, a incapacidade causada pelos sintomas e pelo seu agravamento, em consequência da falta de diagnóstico e de tratamento, leva ao isolamento social e ao absentismo escolar e laboral”, afirma o médico.
“Falamos de uma doença que, além de um impacto físico por todos os sintomas, possível comprometimento de órgãos e alterações que provoca, tem também um impacto psicológico profundo e relevante”, concorda Susana Fonseca, Presidente da MulherEndo, que presta apoio direto às doentes no encaminhamento para os profissionais de saúde com abordagem diferenciada no que diz respeito à doença, promovendo também momentos de literacia para que as doentes fiquem informadas, explica.
“No quadrante institucional, temos feito também um percurso de aproximação do poder político, lutando, com várias iniciativas, para que haja mais e melhores respostas em termos legais e no SNS para as nossas doentes”, afirma ainda Susana Fonseca.
A 16 de fevereiro, a associação esteve presente no Parlamento, onde foi discutido o motivo pelo qual é “urgente” a elaboração de uma Estratégia Nacional de Combate à Endometriose e Adenomiose, de acordo com a MulherEndo. As conclusões não foram uma total desilusão para a associação: foram aprovadas propostas relativas à criação do Dia Nacional da endometriose e adenomiose, a 1 de março, e a recomendação para a constituição de um grupo de trabalho que “elabore uma Estratégia Nacional de combate à Endometriose e Adenomiose com vista à deteção precoce e à adoção de medidas de melhoria da referenciação e acompanhamento das doentes”.
Pelo contrário, a maioria socialista no parlamento chumbou os projetos de lei que propunham o certificado de incapacidade recorrente e intermitente (apresentado pela Iniciativa Liberal), três dias de faltas justificadas por mês (apresentado pelo Bloco de Esquerda) e propostas de recomendação com a comparticipação de medicamentos específicos ou proteção na fertilidade.
“Quando iniciámos este percurso sabíamos que seria longo, mas foi com muita satisfação que, no dia 16, assistimos a uma convergência de opiniões e perspetivas nos diferentes partidos com assento parlamentar”, afirma Susana Fonseca. “A votação não refletiu a unanimidade das opiniões apresentadas. No entanto, consideramos que a aprovação do Dia Nacional é uma vitória que permite marcar um início desta luta política”, continua.
“Além disso, as recomendações feitas ao governo, também aprovadas, permitiram que continuemos a manter contacto com a comissão de saúde e abrem-nos portas a novas negociações”, acrescenta, referindo que “a expectativa era, contudo, que os projetos de lei fossem aprovados para que as doentes tivessem medidas imediatas concretizadas”.
O diagnóstico da doença, como explica Hélder Ferreira, assenta na colheita de uma história clínica cuidada, exame ginecológico e estudos complementares dirigidos como ecografia e ressonância magnética. Contudo, o médico alerta que “pode ser confundido pela sobreposição de doenças com sintomas semelhantes, como miomas, adenomiose e doença do intestino irritável”.
O diagnóstico definitivo é, por isso, histológico, e passa, muitas vezes, por uma laparoscopia, uma técnica cirúrgica mini-invasiva que permite realizar procedimentos na cavidade abdominal e pélvica. “Para muitas doentes, o diagnóstico correto de endometriose pode demorar até 10 anos. Essa longa demora muitas vezes significa que estas doentes têm de consultar inúmeros especialistas, ser submetidas a vários testes e estudos, passar por tratamentos fracassados e suportar anos de angústia e sofrimento desnecessários”, declara o especialista.
“Isto significa também que, enquanto isso, permitimos que a condição progrida ao longo desse tempo, e isso pode levar à infertilidade, a dor persistente ou a disfunção de órgãos como o intestino e a bexiga”. Por isso mesmo, Hélder Ferreira acredita na necessidade de ser promovida uma estratégia de promoção do diagnóstico precoce, já que “isso fará a diferença em termos de prognóstico para se evitarem quadros avançados em que, muitas vezes, a capacidade reprodutiva da mulher é afetada de forma irreversível e os efeitos, a nível dos órgãos pélvicos, poderão ser bastante marcados e incapacitantes”.
Os médicos de medicina geral e familiar, nos centros de saúde, devem ser a primeira linha no diagnóstico, avaliação e orientação terapêutica destas mulheres, acredita. Além disso, o médico sugere a inclusão da endometriose na lista de doenças graves que permitem o alargamento da idade para recurso à Procriação Medicamente Assistida em pessoas diagnosticadas com estas doenças e acrescenta que é importante fomentar a investigação cientifica e a realização de estudos clínicos relacionados com a doença, envolvendo as universidades e escolas de medicina portuguesas.
Os tratamentos disponíveis, explicados por Hélder Ferreira
As decisões de tratamento são individualizadas e consideram a apresentação clínica (por exemplo, dor, infertilidade, presença de tumefações pélvicas), a gravidade dos sintomas, a extensão e localização da doença, os desejos reprodutivos, a idade da doente, os efeitos colaterais da medicação, as taxas de complicações cirúrgicas e o custo. A escolha de um plano de tratamento é baseada tanto na tolerância ao risco e nos objetivos do paciente quanto na eficácia do tratamento. O tratamento da doença intestinal ou retovaginal é indicado se os sintomas característicos estiverem presentes (dispareunia profunda, disquesia, sangramento retal cíclico) e a endometriose retovaginal for identificada na avaliação. O tratamento da endometriose intestinal é indicado para sintomas gastrointestinais inespecíficos (por exemplo, sangramento retal, constipação, distensão abdominal) somente se outras etiologias desses sintomas tiverem sido excluídas. O tratamento cirúrgico urgente é indicado nos raros casos em que uma mulher apresenta obstrução intestinal ou ureteral. Por outro lado, mulheres assintomáticas ou com sintomas leves são tratadas de forma expectante. A endometriose poderá ter uma abordagem terapêutica médica (ou medicamentosa) ou cirúrgica. O tratamento cirúrgico fornece tratamento diretamente correlacionado com os sintomas da doente, proporcionando alívio da dor a longo prazo e está associado à melhoria da qualidade de vida. A ressecção cirúrgica fornece um diagnóstico histológico e reduz a dor ao destruir os implantes endometrióticos. A ressecção cirúrgica pode ser conservadora (tratamento das lesões de endometriose por ablação ou excisão), definitiva (histerectomia, com ou sem ooforectomia, além da ressecção da endometriose) ou radical (remoção de todos os implantes visíveis no momento da cirurgia). As vantagens do tratamento medicamentoso incluem o facto de este tratar todos os locais da doença simultaneamente, poder ter benefícios adicionais (por exemplo, controlo da natalidade), e ser geralmente bem tolerado. As desvantagens do tratamento médico são que este deve ser continuado até à menopausa (quando a endometriose normalmente regride), não é eficaz em todas as mulheres, pode levar mais tempo para obter efeito e a sua interrupção pode resultar em recorrência dos sintomas. Além disso, as mulheres que estão a tentar engravidar devem interromper os medicamentos hormonais, pois eles interferem na ovulação e são potencialmente teratogénicos. Para mulheres com endometriose e infertilidade, existem tratamentos focados na resolução da infertilidade, incluindo a remoção cirúrgica da endometriose com restauração da anatomia normal ou técnicas de reprodução assistida.