A pandemia virou o mundo do avesso de uma forma tão impactante que muitos desabaram criando a maior crise de saúde mental de sempre, como tem vindo a ser destacado de forma global nos cinco continentes, a propósito do Dia Internacional da Saúde Mental que se assinalou esta semana. Portugal não é excepção. Nunca antes se falou tanto em doença mental de uma forma tão transversal. Os jovens, porém, estão entre os mais vulneráveis às adversidades dada à sua ainda curta experiência de vida. Ainda recentemente, um estudo da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra com uma expressiva amostra de quase 5.500 adolescentes de 150 escolas de todo o País, dava conta que 42% deles apresentavam “sintomatologia depressiva”, sendo que 28,5% destes tinham depressão “moderada ou grave”, com as raparigas a “denotarem piores indicadores de saúde mental”.
Junto de Miguel Ricou, um dos maiores especialistas em saúde mental em Portugal, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses e membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, quisemos saber como caem os jovens no abismo depressivo, que impacto exercem as redes sociais, o que está a falhar no acesso aos cuidados de saúde e que soluções poderiam ser implementadas para prevenir esse descalabro.
A pandemia revelou-se devastadora para milhões de pessoas em todo o mundo e Portugal não é exceção… Numa entrevista que deu, disse que o País enfrenta mesmo um tsunami no que diz respeito às questões da saúde mental… E os jovens são quem mais tem sofrido como vários estudos têm revelado…
As faixas etárias mais afetadas têm sido, efetivamente, os jovens e os mais idosos… É preciso perceber que dois anos na vida de um jovem é uma percentagem muito maior do que dois anos na vida de um adulto. Em termos relativos, o tempo que os afeta é muito maior e por isso o impacto também é maior. É importante termos esta noção. A palavra tsunami não é só um termo que funciona jornalisticamente mas, neste caso, quis passar a mensagem que o que está a acontecer em termos de saúde mental são várias vagas, com dimensões diferentes e características diferentes. É preciso assimilar os confinamentos, os desconfinamentos, perceber e explicar as mudanças, o regresso à escola, as máscaras, enfim, tudo o que foi acontecendo e que trouxe impactos diferentes… Nós não sabemos com aquilo que contamos e isso retira-nos aquilo a que chamamos o bem-estar psicológico. Nós estávamos satisfeitos com as nossas rotinas, as nossas orientações e a forma como estávamos habituados a viver a vida. A pandemia veio mudar isso. E é esse mal-estar sentido de forma continuada que, evidentemente, tem impacto nas pessoas. Claro que cada um é como cada qual e uns reagem melhor do que outros. E é esse impacto, esse tsunami de que falamos, que nós não estamos preparados para enfrentar. Mas tal, como nos tsunamis, também aqui há formas de minimizar os riscos e as consequências e é nessa perspetiva que falamos pois a verdade é que não estamos preparados.
Faltam meios, mais recursos, é isso?
Isto começa a vários níveis… Como é que isto se previne? Explicando às pessoas que têm estas dificuldades como é que elas surgem, o que é que isso lhes faz sentir, o que é que devem fazer… Porque a maior parte das reações emocionais, e é isso que estamos a falar, são relacionadas com a nossa incapacidade de gerir essas emoções. As pessoas precisam de aprender a lidar com isto, de perceber porque se sentem assim e porque é que não se sentem de outra forma, o que podem fazer para melhorar, o que podem fazer para evitar esses estados de espírito. E isso continua a estar absolutamente inacessível. Não há respostas nos centros de saúde, por exemplo… Uma das coisas que acontece no nosso país é a dificuldade de acesso e ainda que possam existir alguns cuidados, são ainda muito poucos. A verdade é que para lá chegaram é preciso passar por não sei quantos obstáculos o que faz com que a pessoa, numa situação destas, acabe por desistir. Quem está numa situação de doença mental não adormece de uma maneira e acorda de outra, não é um vírus que demora três dias a incubar e depois aparece e já está. É algo que se vai construindo.
Portanto, quanto mais cedo nós conseguíssemos chegar a estas pessoas, mais facilmente conseguiríamos evitar que isto evoluísse para algo muito mais grave. Ninguém consegue chegar a um centro de saúde e pedir uma consulta para ir a um psicólogo. Primeiro tem de passar pelo médico de família para ser encaminhado para o psicólogo e isto, independentemente de ter 6 meses de espera pela frente. Estamos só a criar barreiras e são barreiras que fazem tudo menos ajudar. A verdade é que a saúde mental sempre foi o parente pobre da saúde.
Os psicólogos nas escolas poderiam ajudar estes jovens?
O psicólogo escolar não faz o mesmo que um psicólogo clínico, tem mais a ver com a aprendizagem, com orientação profissional e matérias de outras dimensões. Deveria ser possível o psicólogo escolar encaminhar para um psicólogo clínico de um centro de saúde e nas universidades a mesma coisa. Entre os poucos pontos positivos da pandemia é que passou a existir um maior foco na saúde mental. Hoje discute-se mais este tema, as pessoas estão mais atentas.
Patologias como o borderline, doença bipolar, fobias, etc, têm maior probabilidade de aumentar com a pandemia?
As doenças mentais têm um trigger, algo que lhes dá início e pode ser uma situação de crise como esta que estamos a viver que causa um desequilíbrio e que depois facilita o aparecimento da doença. Mas as doenças mentais graves são multifatoriais e não se pode explicar isso só pelo fator pandemia. Claro que a pandemia afeta a nossa saúde psicológica, as pessoas não se sentem bem e o estado prolongado leva a pessoa para a doença mental se não for cuidada.
Já foram feitos vários estudos que concluíram o efeito devastador das redes sociais como o Facebook e o Instagram na saúde mental dos jovens. A pandemia agravou ainda mais este efeito?
A pandemia trouxe uma normalização ainda maior daquilo que é o contacto por este meio e voltamos novamente à questão das pessoas que estão predispostas… Que já tem dificuldades a nível social e aí pode surgir um agravamento das circunstâncias… Por um lado as pessoas têm a autonomia de encontrar por elas próprias aquilo que procuram e isso tem um lado positivo, de liberdade, de autonomia, mas também tem um lado claramente paradoxal ponto e não tem a ver só com jovens. Isso ajuda a explicar, por exemplo, as teorias de conspiração, de polarização da sociedade, os populismos, etc. É muito importante lembrarmo-nos que os algoritmos que orientam este tipo de aplicações das redes sociais, os motores de busca, etc são algoritmos que visam promover o mercado, a economia, vender coisas, e são feitos para dar a pessoa exatamente aquilo que ela está à procura. Isto faz com que as pessoas quando vão procurar algo sobre um tema qualquer, só lhes é trazido, através dos algoritmos, informações que validam aquilo que está exatamente à procura. Isto faz com que as pessoas fiquem ainda com mais certezas daquilo que pensam e sem acesso aos contraditórios. Quando estes surgem, eles estão já impermeáveis aos contraditórios porque tiveram sempre informação que foi dominando os sentidos e tornaram-nos muito mais fechados a outras perspetivas e outros modelos. E o que é facto é que acabam por fugir daquilo que é a realidade do mundo. Entra-se numa polarização e de repente só há aquilo que “eu procuro” e “vejo as coisas desta maneira” e assim se entra num mundo quase distópico..
Alguns movimentos mais radicais de ativismo transgénero e anti-trans, especialmente nos EUA, criaram uma grande polarização sobre temas que requerem grande cuidado como o da disforia de género, tendo em conta o impacto irreversível na vida dos jovens envolvidos. O que pensa sobre tudo isto?
É exatamente isso. O que me está a dar é a noção de um extremo e depois podemos olhar para o outro extremo. Os extremos sempre existiram como é evidente, pessoas que se radicalizam numa posição ou noutra, faz parte, somos todos diferentes, há pessoas que têm tendência para uma coisa ou para outra. O problema é o aumento destes extremos, esta é a grande dificuldade. Porque à partida, como em tudo, o que é uma distribuição normal na Natureza, o que está no meio tem uma maior incidência. Portanto, os extremos são importantes, até na nossa sociedade – e é isto que é a noção de inclusão – para nos chamarem a atenção para alguns factos que nós não olharíamos se não chamassem a atenção do extremo. Não é que ele seja verdade ou que seja mentira. É o transformar o extremo como certo ou como errado, seja de um lado ou do outro, é que traz estas dificuldades. E que faz com que algumas pessoas de repente possam não ter acesso aos cuidados de que precisam e faz com que outras pessoas tenham acesso a determinados cuidados radicais de que se calhar não precisavam…
Por exemplo, e eu ando a dizer isto há muito tempo, que a dicotomização entre ser homossexual e heterossexual pode ser falaciosa, errada e muito complicada… Porque a ideia de que nós somos uma coisa ou outra e nos obrigarem a colocar em dois pólos, ajuda tudo menos as pessoas que possam de alguma maneira, de repente, ter ideias, ter vontades, ter pensamentos, ter desejos, e que depois têm que se questionar com elas próprias no sentido de saberem se é heterossexual ou homossexual, se pode ser uma delas ou as duas coisas ao mesmo tempo… E a terem que assumir identidades que não precisavam de assumir. Mas por que raio toda a gente tem que se assumir? Por que raio é preciso falar da sexualidade em público, dizer às pessoas se gostam mais disto ou daquilo?… E depois do outro lado existe a ideia de que isto é uma doença e tem de ser tratado… Mas, lá está, colocam-se as coisas em termos de ter de ser uma coisa ou ter de ser outra, ter de ser certo ou ter de ser errado. Isto acontece naturalmente também na transsexualidade e acontece em tudo na vida. E por isso é que são perigosos esses movimentos de polarização, quando se transformam nas coisas certas ou nas coisas erradas! Porque evidentemente nos vêm trazer, quer de um lado quer do outro, a mensagem errada, em que eu só posso ser uma coisa ou outra, tenho de ser ou azul ou branco. E as coisas não são assim, o mundo é feito às cores, as pessoas são feitas às cores, nem sequer somos a mesma pessoa todos os dias, uns dias somos mais uma coisa, outros dias já somos mais outra… Porque quem não se assume hoje em dia – quase chegamos a este cúmulo – quem tem posições equilibradas não é aceite em lado nenhum! O que nós temos de fazer, como profissionais de saúde e como cuidadores, é tentar chegar o mais possível àquilo que é a realidade de cada um, perceber o que é a diferença de cada um. Porque é isto que é fundamental. E às vezes o que acontece, e este mecanismo é muito perigoso e contraproducente, é ter a ideia de que as coisas têm de ser de uma maneira ou de outra e uns têm razão e outros não têm.
Porque os psicólogos se sentem pressionados a seguir uma determinada orientação alinhada, muitas vezes, com o autodiagnóstico dos jovens, muitas vezes confusos com a sua identidade de género, é isso?
Os psicólogos são pessoas como as outras, bem formados, é certo, mas são pessoas como as outras e, portanto, não posso dizer que não se deixam influenciar por isto ou por aquilo. Só que isso não deixa de ser a negação da própria Psicologia e da intervenção psicológica. Portanto, à partida, os psicólogos não se podem deixar influenciar pelos seus valores pessoais porque se isso acontece comprometem objetivamente aquilo que é a sua intervenção: o pressuposto da Psicologia é que eu não vou trabalhar com um cliente em função daquilo que eu entendo que é certo ou errado – claro que tenho os meus certos e os meus errados para a minha vida, mas tenho de compreender que os certos e os errados para a vida do outro podem ser diferentes – a lógica é que os psicólogos não se deixem influenciar por questões ideológicas, por questões de moda, de outra coisa que não seja a ciência psicológica. E de facto a Ciência Psicológica, o que nos veio ensinar, é que esse tipo de perturbações, chamemos-lhe assim, nesse caso a disforia de género, é algo que faz sofrer muito as pessoas e nesse sentido é um problema. Mas uma parte desse problema reside no facto de como a pessoa não se consegue identificar com o seu sexo ou às vezes com nenhum deles, nem com o ser homem nem com o ser mulher, isso é uma boa parte do sofrimento. E como às vezes não é possível alterar… Porque essa é a grande questão – eu não consigo transformar alguém que tem uma disforia de género numa coisa diferente do que essa pessoa é, porque há coisas que se conseguem alterar e outras que não se conseguem. Nós percebemos isso em relação à orientação sexual e percebeu-se isto em relação à disforia de género. E, portanto, a lógica é, evidentemente, conseguirmos criar as condições – e por isso é que há esta tentativa de despatologização da disforia de género, tirar a coisa da doença, não que não seja uma perturbação, porque é algo que era preferível que não tivesse acontecido à partida uma vez que causa sofrimento às pessoas e nós não queremos sofrimento. Mas inevitavelmente, muito do sofrimento é causado pelo facto de a pessoa se sentir diferente dos outros e não conseguir sentir-se aceite. Por isso é que é percebemos que quanto mais a sociedade for inclusiva e tratarmos estas pessoas como pessoas, como qualquer outra, não criando a tal noção do binário, que tem de ser homem ou tem de ser mulher, menos estas pessoas sofrem e, portanto, a noção de doença diminui claramente. E é daqui que vem a questão de haver uma tendência para as pessoas se aceitarem como elas são e irmos um bocadinho nesse caminho. Ora isso não invalida, evidentemente, também por causa de tudo aquilo que hoje em dia se vai falando e discutindo, que haja pessoas que possam, em certa altura, identificarem-se com isto ou com aquilo e depois de facto isso não se concretizar e não ser real. A personalidade é algo que está sempre em construção. E, portanto, que não possa haver, vamos chamar-lhes então erros. À partida, os psicólogos especialistas – e eu não sou especialista dessa área, que fique claro – terão a experiência, a sensibilidade e a capacidade para conseguirem perceber isso… É fundamental que, evidentemente, o psicólogo não se deixe influenciar por qualquer tipo de ideologia, religiosa, seja ela qual for, que interfira no seu trabalho e que comprometa aquilo que é trabalhar no melhor interesse daquela pessoa. Pessoa que não está, à partida… Só porque em determinada altura sentiu isto ou lhe pareceu aquilo, pode não ser necessariamente esse o caminho… O que é fundamental é, logo à partida, com as pessoas, tentar explicar que qualquer situação é normal. Pode não ser normal do ponto de vista social – e esse é um trabalho que se tenta fazer do ponto de vista social, mas não pode ser à força ou à bruta como disse antes porque não adianta, até cria mais resistências às vezes, porque as pessoas sentem-se ofendidas e desconfiadas … Mas esse trabalho social tem de ser feito até para dar maior tranquilidade às pessoas e mais facilmente elas não terem de optar rapidamente e definitivamente por um lado ou por outro lado. É isso que se pretende.