Um grupo de pessoas com córneas danificadas recuperaram total ou parcialmente a sua visão depois de se sujeitarem a uma cirurgia inovadora que recorreu a um subproduto da indústria alimentar, pele de porco, para substituir parte da região ocular afetada. Do grupo de 20 pacientes, 14 eram cegos antes de receberem o implante e 6 estavam próximos de o ser. Dois anos após a cirurgia, todos os participantes do estudo recuperaram a visão, sendo que três apresentam, inclusive, uma visão perfeita de 20 em 20.
Provenientes do Irão e da Índia, todos os pacientes sofriam de uma condição conhecida como ceratocone que se caracteriza pela danificação da camada externa protetora do olho, a córnea, que vai ficando gradualmente mais fina, enquanto se projeta progressivamente para fora. Os investigadores da Linköping University e da LinkoCare Life Sciences AB conseguiram devolver ao grupo a visão recorrendo a um implante de córnea especial feito de colágeno – um tipo de proteína, de pele suína, subproduto da indústria de alimentos que é purificado e posteriormente usado em dispositivos médicos aprovados para o tratamento de glaucoma pela Food and Drug Administration, agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos da América.
Os resultados obtidos e publicados na revista Nature Biotechnology surpreenderam os próprios investigadores, que consideraram a intervenção um sucesso. “Ficamos surpreendidos com o grau de melhoria da visão”, admitiu Neil Lagali, professor de oftalmologia experimental da Universidade de Linköping, na Suécia, e coautor do estudo. O sucesso da cirurgia foi transversal a vários aspetos já que, além de ter tido resultados muito promissores na visão dos pacientes, trouxe outras vantagens ligadas, por exemplo, à disponibilidade e facilidade em obter a cirurgia.
De acordo com um estudo de 2016, cerca de 12,7 milhões de pessoas estão em listas de espera para transplantes da córnea, o único tratamento para a cegueira da córnea, sendo que apenas um em cada 70 pacientes terá a oportunidade de avançar com a cirurgia. A maioria dos indivíduos que precisam desta intervenção, que até agora requeria doação humana, vive em países de baixo e médio rendimento na Ásia, África e Médio Oriente. A doação de córneas humanas tem, assim, uma série de limitações que poderiam agora ser contornadas com a introdução deste tipo de intervenção.
Uma vez que o tecido utilizado no novo método descrito pelo estudo é proveniente da pele de porco, a sua disponibilidade será, em princípio, significativamente maior do que aquela verificada nos doadores humanos. Assim, a solução oferecida pelos investigadores poderá ser uma forma de tornar o tratamento deste tipo de cegueira mais acessível aos seus pacientes em diferentes partes do mundo.
“A bioengenharia de tecidos implantáveis é a chave para lidar com a carga global da cegueira da córnea”, diz o estudo. “Isso potencialmente eliminaria o risco de rejeição e tornaria as córneas disponíveis para pacientes em todo o mundo”, acrescentou ainda Marian Macsai, professora clínica de oftalmologia da Universidade de Chicago que não esteve envolvida no estudo, em resposta à NBC News.
Sendo o colágeno da pele de porco um subproduto da indústria alimentar, há também uma possibilidade acrescida de que este seja mais fácil de adquirir, inclusive, do ponto de vista económico. “Fizemos esforços significativos para garantir que a nossa invenção está amplamente disponível e acessível a todos e não apenas aos ricos”, reforçou Mehrdad Rafat, investigador e empresário para o projeto e desenvolvimento de implantes, em comunicado à imprensa.
Além da disponibilidade limitada de doadores, o tratamento comum implica que os médicos substituam cirurgicamente a totalidade da córnea, correndo, com isso, o risco de rejeição do novo tecido, assim como de complicações de cicatrização, infeções, astigmatismo ou a necessidade de suporte a longo prazo. O novo método, no entanto, permite que os médicos insiram o implante na córnea existente, o que não só evita que sejam necessários pontos como oferece uma incisão minimamente invasiva, especialmente quando comparada com aquela feita no tratamento convencional, utilizando um laser avançado ou manual.
“As operações foram livres de complicações; o tecido cicatrizou rapidamente; e um tratamento de oito semanas com colírios imunossupressores foi suficiente para evitar a rejeição do implante”, afirma um comunicado de imprensa do estudo. “Nos transplantes convencionais de córnea, o medicamento deve ser tomado por vários anos. Os pacientes foram acompanhados por dois anos e nenhuma complicação foi observada durante esse período”.
Além destes resultados promissores, as novas córneas de origem animal podem ser também mais versáteis, uma vez que oferecem a possibilidade de serem armazenadas por muito mais tempo do que as doações de órgãos – dois anos em comparação com duas semanas. O estudo realça ainda que o tecido com origem animal, obtido através da dissolução de tecido de porco que forma uma solução de colágeno purificado, não exige testes de patogénicos na eventualidade de surtos virais.
Ainda assim, e apesar das várias vantagens que parece oferecer, o método descrito pelos investigadores ainda precisa de ser alvo de um estudo clínico mais amplo antes que possa ser formalmente aprovado e usado na área da saúde. Existe também a esperança de que tratamentos semelhantes que recorram a tecido animal em lugar de doações humanas possam ser utilizados em outros tipos de doenças oculares.