Quantos de nós não recordam com saudade momentos da infância ou do passado graças a determinados odores? O cheiro de um bolo acabado de fazer, de um prato que costumávamos comer na infância, de um perfume especial, do creme da praia, do óleo dos barcos ou até mesmo do tabaco fumado por um avô ou uma avó.
Por que razão tal acontece? É que a forma como o nosso cérebro processa o odor das coisas está intimamente ligada com determinadas estruturas cerebrais responsáveis por associar memórias a emoções.
O que se passa, explica o neurologista Filipe Palavra, Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia, é que, após ser recebida pelos mais de 400 recetores olfativos que temos no nariz, a informação sobre o cheiro flui através do nervo olfativo para o bolbo olfativo e daí é projetada para uma zona do cérebro chamada substância perfurada, onde a maior parte das fibras seguem em direção à amígdala.
A amígdala é um núcleo de substância cinzenta relacionado com a identificação de ameaças, com o medo e com as emoções, que tem uma relação muito estreita com o hipocampo, a sede das nossas memórias. “A informação está guardada no hipocampo como se fosse numa gaveta, mas é a amígdala que é responsável pelo aspeto emocional da memória, dá-lhe cor”, explica o neurologista.
Ou seja, se muitas das fibras da via olfativa se dirigem para a amígdala, “é natural que o cheiro se relacione com esta cor que damos às lembranças”. Devido a esta conexão amigdalo-temporal, alguns cheiros são capazes de despertar em nós memórias, umas boas outras más,
“Quem já leu a Cidade e as Serras, com certeza lembra-se da descrição do Zé Fernandes quando chega a Tormes e o cheiro a favas com chouriço e a canja de galinha lhe desperta todas as memórias de infância”, exemplifica Filipe Palavra. A associação de memórias a curto e longo prazo com os diferentes cheiros tem sido, cada vez mais, objeto de estudo de investigadores em todo o mundo.
Um estudo publicado na revista científica Progress Neurology, em junho de 2021, descobriu, por exemplo, que, quando as pessoas se encontram em descanso, a atividade dos seus centros olfativos cerebrais está ligada ao hipocampo, a tal gaveta de memórias, algo que acontece em muito menor escala quando falamos da visão ou do tato. A descoberta sugere que o olfato está muito mais ligado de forma contínua a processos de formação de memórias no cérebro do que outros sentidos.
O que acontece quando as memórias olfativas se formam?
Foi na tentativa de responder a esta questão que um grupo de cientistas do Centro Champallimaud, em Lisboa, desenvolveu um estudo com ratinhos de laboratório, cujos resultados foram publicados na revista científica Nature, em dezembro do ano passado.
Os investigadores focaram-se no córtex olfativo primário, pois, como sublinha Zachary Mainen, investigador principal no Centro Champallimaud, “só o olfato possui ligações diretas recíprocas com o sistema do hipocampo”, responsável pela memória e pela navegação no espaço.
Para confirmar a hipótese que o córtex olfativo primário pudesse estar a fazer mais do que simplesmente distinguir cheiros, os cientistas usaram ratos num labirinto com determinados odores, para que estes aprendessem a memorizar associações entre esses cheiros e os lugares onde eles se encontravam.
E, de facto, se alguns dos neurónios desta zona reconheceram apenas odores e outros apenas o local do labirinto, outros provaram desenvolver uma dupla função de reconhecimento do cheiro e da localização.
Será por esta razão que criamos memórias associadas a lugares específicos? “Todos estes neurónios estão misturados uns com os outros e provavelmente interligados. Portanto, podemos especular que a ativação de associações cheiro-espaço possa ser causada pela atividade dentro desta rede”, sugere Cindy Poo, primeira autora do estudo.
Aromaterapia para combater a neuro-degeneração?
A possibilidade de usar os diferentes cheiros para estimular a memória parece ser um campo que também interessa aos investigadores, abrindo novas possibilidades terapêuticas no futuro.
Um grupo de investigadores de Nova Iorque e de Israel levou a cabo um estudo, em 2019, no qual mostrou fotografias a um grupo de voluntários, algumas das quais combinadas com odores desagradáveis. Vinte e quatro horas mais tarde, os participantes recordavam melhor as imagens que tinham sido mostradas ao mesmo tempo que um cheiro do que aquelas mostradas sem ele.
Outro estudo, publicado em 2020, mostrou que cheirar perfume de rosas enquanto estudavam e na noite antes de um exame melhorou o desempenho dos participantes no mesmo.
Apesar de considerar a evidência científica ainda muito residual nesta área, para se poder afirmar que a chamada aromaterapia deva ser claramente recomendada como a única terapia, Filipe Palavra refere que esta pode apresentar aspetos positivos. “Pelo menos, do ponto de vista comportamental, alguns cheiros têm capacidade de deixar as pessoas menos agitadas”.
O médico sublinha que muitas doenças neuro-degenerativas têm como tradução clínica precoce a diminuição, ou mesmo a perda, de olfato. “Vemos muito isso na prática clínica, sobretudo na doença de Parkinsson. Os neurónios neuro olfativos são um biomarcador do processo neuro-degenerativo que vai acontecendo dentro da nossa cabeça”.
A aromaterapia, explica o médico, acaba por estimular esses mesmos neurónios, “evitando os aspetos atróficos e neuro-degenerativos associados à via olfativa, estimulando as nossas memórias e dando prazer aos pacientes com aromas agradáveis”.