Alguma vez se sentiu irritado, mas viu esses sentimentos desvanecer depois de comer? Se sim, não é o único e agora a ciência pode prová-lo e explicar o porquê. De acordo com um estudo publicado esta quarta-feira na Plos One, sentir fome pode conduzir a um aumento nos níveis de raiva e irritação, assim como a uma descida na sensação de prazer.
Há muito que é estabelecida a associação entre a fome e sentimentos de raiva. Na língua inglesa a ligação de consequência entre ambos deu, inclusive, origem a um novo termo que rapidamente se tornou popular entre os seus falantes: ‘hangry’, uma combinação das palavras inglesas hunger – fome, e anger – irritação. Apesar da popularidade e rápida adesão ao termo, não existiam bases científicas que provassem que a fome poderia, de facto, ser a origem de uma disposição mais irritável, ou, pelo menos, não até agora.
“O termo entrou no uso coloquial comum, pelo menos na língua inglesa, e muitas pessoas parecem estar cientes de que o estado de fome pode ter um efeito tanto nas experiências emocionais quanto no comportamento. Mais especificamente, tanto relatos históricos como conceituais sugerem que a fome muitas vezes leva a emoções negativas, incluindo raiva e irritabilidade. No entanto, e apesar disso, surpreendentemente pouca pesquisa se concentrou na experiência, manifestação e consequências de estar com fome, particularmente em ambientes quotidianos”, escrevem, na publicação, os autores.
O estudo liderado pelo psicólogo social Viren Swami, da Universidade Anglia Ruskin, tornou-se, por isso, “o primeiro estudo de uma experiência com amostras sobre os resultados emocionais da fome”. A metodologia implicou seguir 64 participantes da Europa Central entre os 18 e os 60 anos ao longo de três semanas, registando cinco vezes a cada dia os seus sentimentos de fome, raiva, irritabilidade, prazer e excitação. “Os resultados indicaram que maiores níveis de fome auto relatada foram associados a maiores sentimentos de raiva e irritabilidade e de menor prazer”, concluiu o estudo.
A investigação de Swami foi pioneira pela forma como monitorizou as emoções dos participantes. Estudos anteriores que estabeleceram uma associação entre a fome e o humor restringiram-se ao ambiente de laboratório, o que os autores acreditam que pode ter influenciado os resultados por “não replicar totalmente a experiência e manifestação da fome em ambientes quotidianos”. Assim, muitas questões ficaram ainda por responder até porque, e de acordo com o próprio estudo, experiências passadas foram realizadas “especialmente em crianças” e os resultados “foram mistos”. O presente estudo procurou, contrariamente às investigações anteriores, acompanhar e registar as emoções dos participantes enquanto estes mantinham as suas rotinas diárias habituais, assegurando com isso que compreendiam melhor os efeitos concretos da fome no dia-a-dia.
Os resultados do estudo mantiveram-se, inclusive, constantes, após serem consideradas outras variáveis como o “sexo dos participantes, idade, índice de massa corporal, comportamentos alimentares e raiva característica”. Assim, Swami concluiu que “estar ´hangry´ (com fome e, consequentemente, irritado) é real”. Por outro lado, as associações previamente consideradas entre a fome e possíveis níveis elevados de excitação e prazer não foram significativas, o que poderá ser mais uma comprovação de que “os níveis diários de fome estão associados à emotividade negativa e apoiam a noção de estar “com fome””.
Qual a ligação entre a fome e a irritação?
Apesar dos resultados obtidos e de a ligação entre a fome e sentimentos de irritação ter sido estabelecida, as razões que a justificam não são ainda claras. Um estudo anterior já havia associado níveis de glicose no sangue mais baixos com um aumento na impulsividade, raiva e agressão. A sensação de fome também pode afetar o autocontrolo de um indivíduo, o que conduziria a emoções negativas como a raiva.
Em resposta à agência de notícias alemã DPA, Swami ainda referiu a possibilidade de o cérebro não ter a mesma capacidade de regular as emoções após uma queda do açúcar no sangue ou de não ser capaz de reagir de forma diferente aos estímulos externos quando o indivíduo se encontra com fome. “Provavelmente é uma combinação complicada de ambos os fatores”, explicou, acrescentando que os fatores psicológicos desempenham um papel mais significativo na sensação de “fome” do que os níveis de açúcar no sangue.
As hipóteses foram lançadas, mas por agora o único foco do estudo é comprovar que existe, de facto, uma relação de consequência entre a fome e os níveis de raiva de um indivíduo, em lugar de justificar essa relação. O estudo também não ofereceu soluções concretas a quem deseja controlar as consequências da fome, mas propõe que reconhecer a origem dos sentimentos de raiva e irritação já pode ser um passo na direção certa. “Na maioria das vezes, podemos estar cientes do que estamos a sentir, mas não entendemos a causa. Se pudermos rotulá-lo, estaremos mais aptos a fazer algo a respeito disso”, explica Swami. Por outras palavras, reconhecer que a nossa raiva se está a manifestar apenas porque temos fome pode ajudar a controlar esse sentimento, esclarece o autor.
O estudo pode ter algumas outras aplicações no quotidiano, nomeadamente no que toca, por exemplo, aos sistemas educativos. Crianças que vão para a escola com fome têm menos probabilidade de aprender de forma eficaz e mais probabilidade de ter problemas comportamentais. Assim sendo, garantir que os alunos são alimentados adequadamente deve ser uma prioridade do sistema escolar. Num contexto profissional, o resultados também podem ter implicações igualmente importantes, ajudando os indivíduos a garantirem “de forma mais eficaz comportamentos individuais e relacionamentos interpessoais produtivos”, esclarece o estudo.